4° dia de juri: médicos acusados de retirar rins de pacientes vivos

4° dia de juri: médicos acusados de retirar rins de pacientes vivos

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 9:23

Júri deverá entrar no último dia nesta quinta (Foto:

Renato Ferezim/VNews)

  O julgamento de três médicos acusados de matar quatro pacientes num hospital de Taubaté, no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, em 1986, ao retirar rins irregularmente das vítimas como parte de um suposto esquema de tráfico de órgãos humanos, entrou em seu quarto dia nesta quinta-feira (20). O júri foi retomado às 10h e está sendo realizado desde segunda (17) no Fórum Central da cidade.

Nesta quarta-feira (19), foram ouvidos o nefrologista Pedro Henrique Masjuan Torrecillas e o neurocirurgião Mariano Fiore Júnior, de 62 anos.

Na terça-feira (18), o urologista Rui Noronha Sacramento, 60, foi interrogado por quase três horas. Os três réus respondem em liberdade e no exercício legal de suas profissões pelo crime de homicídio doloso (com intenção de matar) dos pacientes José Miguel da Silva, Alex de Lima, Irani Gobbo e José Faria Carneiro. Por volta das 15h45 desta quarta, teve início a sessão de debates entre a Promotoria e a defesa dos acusados. Em sua fala de duas horas e meia, o promotor Márcio Friggi sustentou a tese de que para alimentar uma rede de tráfico de órgãos foram cometidos os quatro homicídios. A sessão só foi retomada às 19h, depois de um intervalo de 40 minutos, concedida logo depois da conclusão da apresentação da Promotoria.

Em síntese, o advogado João Romeu Correia Goffi defendeu que os pacientes já estavam mortos quando os órgãos foram retirados e comparou o processo do caso Kalume ao da Escola Base de São Paulo, onde a denúncia foi baseada em afirmações falsas de testemunhas.

A réplica da Promotoria está prevista para as 9h desta quinta-feira (20), quando o julgamento entrará em seu quarto dia. Em seguida, a defesa terá direito a mais duas horas para a tréplica. Está prevista ainda uma hora de intervalo para o almoço antes que o júri se reúna para tomar uma decisão. A partir daí, os jurados terão duas horas para chegarem a uma conclusão. A previsão é que a sentença seja proferida pelo juiz Marco Antônio Montemor no final da tarde desta quinta-feira.

Caso sejam condenados, cada um dos médicos poderá pegar pena de 6 a 20 anos de reclusão. Outra hipótese é a de absolvição. Durante a fase processual, os três médicos sempre negaram ter cometido os assassinatos dos quais são acusados.

Segundo a Promotoria, os médicos falsificaram prontuários de pacientes vivos, informando que eles estavam com morte encefálica (sem atividade cerebral e sem respiração natural) para convencer suas famílias a autorizarem a retirada dos rins para doação.

O promotor Márcio Augusto Friggi de Carvalho informa que, nos anos 80, a equipe médica da Faculdade de Medicina de Taubaté (Unitau) usava o extinto Hospital Santa Isabel de Clínicas (Hosic), onde atualmente está localizado o Hospital Regional de Taubaté, para cometer os crimes e desvio de conduta ética e moral. Como hoje, na época a instituição era popular, mas atendia convênios médicos particulares.

Segundo a denúncia do Ministério Público, os quatro pacientes estavam vivos quando entraram no extinto Hosic e morreram após a retirada desses órgãos há mais de 24 anos. Segundo o promotor, as vítimas morriam por outras complicações em razão da ausência desses órgãos.

O júri começou na manhã de segunda-feira, com o depoimento das testemunhas arroladas pela acusação: o médico Roosevelt de Sá Kalume (que revelou o caso), a médica Gilzélia Batista (responsável por guardar os prontuários médicos), a enfermeira Rita Maria Pereira (que afirmou ter visto um médico retirar os órgãos de um paciente vivo), o médico César Vilela, Ivã Gobbo (irmão de um dos pacientes mortos), Regina Teixeira (telefonista que trabalhava no setor de prontuários), Lenita Bueno (médica anestesista). Também foi ouvida na segunda a testemunha de defesa Paulo Arantes de Moura.

Na terça, foram ouvidas seis testemunhas solicitadas pela defesa, outras três foram dispensadas. Nesse mesmo dia, também aconteceu uma acareação entre a enfermeira Rita Pereira e uma anestesista que negou ter ocorrido retirada de órgãos de paciente vivo.

Em seu interrogatório, Rui Sacramento voltou a negar que foram retirados rins de pacientes vivos e afirmou que Kalume revelou o suposto esquema por “disputa de poder”.

Caso Kalume

Kalume, que chegou a ser internado no início da noite de segunda no Hospital Regional de Taubaté com taquicardia após prestar seu depoimento. Ele foi o responsável por revelar o caso em 1987. Então diretor da mesma faculdade, o médico procurou o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) para informar que um programa ilegal de retirada de rins de cadáveres para doação e transplantes acontecia sem o seu conhecimento e aval.

Na época, o assunto ficou conhecido nacionalmente e a imprensa o tratou como caso Kalume, em referência ao sobrenome do denunciante. O escândalo culminou com a abertura de inquérito policial em 1987 e até virou alvo em 2003 da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava a atuação de organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos no Brasil.

Os médicos foram absolvidos das acusações de tráfico de órgãos e eutanásia nos procedimentos administrativos e éticos do Cremesp, em 1988, e do Conselho Federal de Medicina (CFM), em 1993. Além disso, o caso em Taubaté ajudou na discussão a respeito da elaboração da atual lei que trata sobre a regulamentação dos transplantes de órgãos no país até hoje. Segundo o CFM, a lei é a 9.434, de 1997.

Em 1993, Kalume chegou a publicar um livro sobre o caso. Para narrar os fatos, ele usou nomes diferentes dos personagens da vida real. “Transplante”, no entanto, deixou de ser publicado. Apesar disso, a obra também faz parte do processo contra os médicos.

Já em 1996, após quase dez anos de investigação, a Polícia Civil de Taubaté concluiu o inquérito que responsabilizou quatro médicos pelas mortes de quatro pacientes. Um dos acusados morreu em maio deste ano.

Médium

A acusação da Promotoria contra os médicos se baseia somente no homicídio doloso. Segundo Friggi de Carvalho, laudos do Instituto Médico-Legal (IML), da Polícia Técnico Científica e do Cremesp concluíram que os pacientes não estavam mortos antes da retirada dos rins.

Durante o processo, testemunhas relataram que até uma espécie de médium foi apresentado pelos médicos aos parentes para dizer que havia entrado em contato com o suposto morto no plano espiritual e ele havia pedido para os familiares autorizarem a doação.

Em setembro de 2010, em reportagem publicada pelo G1 , os defensores dos réus negaram as acusações de que seus clientes forjaram documentos. Alegando inocência, a defesa deles sustentou que as retiradas dos rins foram feitas em pessoas que tiveram morte cerebral diagnosticada. Os réus disseram que exames de arteriografia mostraram que os pacientes estavam clinicamente mortos, em coma irreversível ou morte encefálica.

Os réus já disseram que os órgãos iam para o programa de transplantes de um convênio entre a Unitau e o Hospital das Clínicas (HC), da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista. Mas segundo o promotor Friggi de Carvalho, esse acordo jamais existiu. “Não há nenhum registro disso em lugar algum”, disse.

Enquanto isso, amigos e parentes dos acusados dividem espaço com os familiares dos pacientes mortos no plenário onde ocorre o julgamento do caso Kalume. De um lado, estudantes de medicina com camisetas com inscrições em favor dos réus torcendo pela absolvição deles. Do outro, pessoas querendo a condenação dos acusados.          

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