"Pode dizer, isso tudo foi uma loucura, né?", arrisca, em um impulso, a adolescente Kelly dos Santos, de 14 anos, antes mesmo de a entrevista começar na casa do namorado, o também adolescente Mateus Alves, de mesma idade, em um bairro afastado de Guarulhos (Grande São Paulo).
Mais de uma hora de bate-papo depois, de muitos sorrisos, alguns constrangidos, outros mais soltos, de troca de gracejos mútuos e de carícias, a jovem de cabelos vermelhos que combinam com as tênues sardas do rosto faz questão de deixar claro, no entanto, que o casal não está arrependido da fuga de suas respectivas residências e da epopeia que viveram desde a última quarta-feira (23) até domingo (27), quando finalmente reencontraram os pais.
“Nunca achei que fosse uma loucura. Valeu a pena porque as coisas mudaram por aqui. Não estou arrependida. Eu faria de novo. Vou ter muita coisa para contar para os meus filhos”, afirmou, como conclusão da aventura vivida ao lado do primeiro namorado.
Com um corte de cabelo semelhante ao do cantor teen Justin Bieber no início de carreira, Mateus não demonstra a mesma segurança que a exibida pela namorada em relação à solução radical que encontraram para ficar juntos, mas aparenta alívio com as mudanças recentes em que suas ações resultaram.
“Tomamos essa decisão por medo de nos separarmos, da minha parte e da parte dela. Então, para mim, tinha de ser, tinha que ser, e ela também decidiu isso e para ela também tinha que ser assim. (...) Por enquanto, melhorou tudo, porque a família está mais ligada, há mais diálogo. Mas vamos conversar ainda”, ressalta.
A noite da segunda-feira (28) seria - e, provavelmente, os próximos dias serão – para discutir a relação entre pais e filhos. Ao menos, essa foi a promessa de Cristiane Alves de Souza, mãe de Mateus, e de José Manuel, pai de Kelly. E a DR (gíria para discutir a relação) seria mesmo em família, com todos reunidos.
“Vou conversar com ele hoje (segunda-feira) também. Chamei o pai dele e vamos ter uma conversa. O primeiro ponto é ouvir, tanto ele quanto ela. Procurar ver onde estavam os erros e procurar conversar. Nada como um diálogo para se resolver as coisas. Nada de botar uma mochila nas costas e sair por aí. Tantos eles quanto nós sofremos muito. A mudança tem que vir das duas partes. Mesmo estando distante, morando com a avó dele, ele sabe que pode contar comigo e com o pai dele”, afirma Cristiane.
José Manuel fez um mea culpa e admitiu erros da parte dele e também tentou se mostrou aberto ao diálogo com a filha. “Já me entendi com ela, sim, mas ainda não conversamos tudo o que temos para conversar. Espero que a conversa seja amigável. Espero que eles cumpram algumas regras e que não voltem a fazer uma bobagem dessas. Porque, além de eles correrem risco, acabaram com a família. A família morreu durante estes dias. (...) Todo mundo erra. Eu errei em algumas partes, mas estou disposto a conversar. “
De todo modo, Mateus e Kelly, com certeza, já têm história para contar para os pais, parentes, amigos e, quem sabe um dia, até para os filhos. Um história de aventura com alguns sustos, de medo, fome, cansaço, dor e privações. Mas uma história também de coragem, ousadia, solidariedade, compaixão e amor, claro. Afinal, o(a) primeiro(a) namorado(a) ninguém esquece.
Planejamento
Mateus e Kelly moram em residências próximas, mas só se conheceram por atuarem em vídeos para um canal específico do Youtube. No final de janeiro, atuaram juntos em um destes vídeos. Pouco depois, começaram a namorar – aliás, o primeiro namoro de ambos. No dia 23 de fevereiro, Mateus foi até a casa de Kelly para pedi-la em namoro junto ao pai dela. “A turma do vídeo toda foi comigo para ver eu fazer o pedido. Ele disse: ‘Não faça com a minha filha o que você não quer que faça com a sua um dia.’”, conta, dando risada.
O namoro só acontecia entre quatro paredes, na casa dela ou dele. Com as restrições impostas, principalmente por parte do pai de Kelly, o casal começou a cogitar a fuga de casa. “Foram três vezes que falamos em fugir. Da última vez, foi por causa de uma nota baixa que ela tirou e o pai dela começou a brigar com ela. Ao mesmo tempo, a minha mãe começou a falar que iria me levar para morar com ela em São Paulo. Eu não queria isso”, disse Mateus.
Diante de uma possibilidade de separação, o casal começou a fazer planos. Kelly se encarregou de levantar o dinheiro para a fuga; Mateus tratou do planejamento, como os roteiros e o que iriam levar. Kelly juntou, ao todo, R$ 367,00. Enquanto isso, Mateus elaborava o roteiro, pesquisando na internet.
A data para partida foi 23 de julho, aniversário de cinco meses de namoro. O destino escolhido foi a cidade de Itanhaém, no litoral sul do estado. “Sabia apenas que tinha praias boas”, justifica. Na bagagem, três mochilas, com poucas roupas, produtos de higiene pessoal, comida, como macarrão instantâneo e biscoitos, uma panela, um violão e dois skates – isso mesmo, dois skates. “Estava planejando morar lá e trabalhar tocando e cantando em algum lugar, algum bar”, contou.
Logo depois de iniciarem a fuga, pararam em um supermercado em Guarulhos para comprar uma barraca, ao custo de R$ 46,00. “Uma mulher que estava na frente do mercado falou assim quando nos viu: ‘Suas mães devem estar com o coração na mão.’”, lembrou Mateus.
1º Dia (quarta-feira, 23)
Pelo roteiro traçado com bastante antecedência, no dia 18 de junho, o casal pegaria um ônibus de Guarulhos até a Estação Armênia do Metrô, na Zona Norte. De lá, seguiriam até a Estação Ana Rosa, onde fariam a baldeação para a Estação Tamanduateí, já na linha verde do Metrô. A partir daí, pegariam um ônibus para Ribeirão Pires, ponto de partida para o litoral pelo Caminho do Mar, antiga estrada de acesso à Baixada Santista, atualmente fechada para veículos.
O casal conseguiu chegar em Ribeirão Pires, na região metropolitana, na noite de quarta-feira. Nesta cidade, depois de muito caminhar em busca de um local para armarem a barraca, tiveram de pernoitar na calçada de um bairro nobre, segundo Kelly. “Por volta das 3h (de quinta-feira, 24), passou um carro de polícia por nós, mas não falaram nada. Nessa hora, entrei em pânico”, recordou Kelly.
2º Dia (quinta-feira, 24)
Na manhã de quinta-feira, eles seguiram a pé pela Rodovia Índio Tibiriça - que liga a Via Anchieta até a cidade de Suzano - até o Caminho do Mar, onde chegaram por volta do meio-dia. Segundo eles, as pessoas que os avistavam perguntavam se eles estavam drogados. Depois, procuravam aconselhá-los, em vão, a retornar para casa. Em contrapartida, em momento algum foram abordados por policiais, militares ou rodoviários, seja em área urbano ou na rodovia.
“Nosso objetivo era descer até Cubatão (na Baixada Santista) e pegar um ônibus até Bertioga (no litoral norte). De lá, pegaríamos outro ônibus até a Praia Grande (na Baixada Santista) e, depois, mais um ônibus para Itanhaém (no litoral sul)”, revelou.Se dar ao trabalho de viajar de um lado para outro no litoral tinha por objetivo evitar passar por postos rodoviários nas estradas mais movimentadas, revelou Mateus. Além disso, também evitaram pegar ônibus em rodoviárias intermunicipais. “Pois eles iriam pedir os nossos documentos”, justifica Mateus. Para completar, cortaram laços de vez com suas famílias ao retirarem os chips de seus celulares. Posteriormente, os aparelhos foram destruídos.
Já no Caminho do Mar, andaram por cerca de 900 metros. “Estava dando tudo certo até aí. Mas começou a ter muito mosquito, negócios de macumba, o frio”, relata Mateus. E a sensação de medo foi inevitável. Para demovê-los de vez da ideia de seguirem até Cubatão, um outro casal que passava pelo local informou-lhes que a trilha até a cidade era muito longe e perigosa.
Desta forma, o casal decidiu retornar para Ribeirão Pires de ônibus. Na volta, Mateus passou mal e teve uma crise de choro. “Ele não parou de chorar a viagem toda de ônibus”, relembra Kelly. “Não lembro de nada”, completa Mateus, sem saber explicar o motivo da crise. Em Ribeirão Pires, dormiram mais uma vez na calçada de um outro bairro nobre.
3º Dia (Sexta-feira, 25)
Na sexta-feira, vagaram pelas ruas de Ribeirão Pires, comendo em lojas de conveniência de postos de gasolina. Por fim, decidiram pegar o trem da CPTM. “Ficamos para lá e para cá nas estações, para ver onde iríamos dormir na noite seguinte. A intenção era ir para Liberdade (região central de São Paulo)”, relembra Mateus.
Por fim, se decidiram pela Estação Praça da Árvore do Metrô, na Zona Sul da capital. “Ele achou que haveria uma praça com árvores e que íriamos poder acampar nesta praça”, recordou Kelly. Antes, porém, o casal foi até um shopping da Zona Norte para comprar mantas. “Pagamos R$ 25 cada uma”, diz Kelly.
Apesar disso, o frio se tornou insuportável assim que a noite caiu. E mais uma vez Mateus teve uma crise e chorou. “Dormimos em uma viela. Tremíamos tanto até o dente doer”, recordou. Enquanto um dormia, o outro vigiava, para evitar que fossem roubados ou até mesmo vítimas de algum tipo de violência.
4º Dia (Sábado, 26)
No dia seguinte, o casal conheceu um rapaz chamado Paulo, que morava próximo, com quem conversaram. “Ele nos disse onde tinha uma casa para alugar, por R$ 450, e onde procurar emprego. E conseguimos, em uma lanchonete. A proprietária iria nos pagar R$ 100 por mês para cada um, para fazermos de tudo na lanchonete. Era para começarmos hoje (segunda-feira)”, conta Mateus.
Mais tarde naquele dia, o casal decidiu ficar acordado para esperar por Paulo na mesma viela. No entanto, foi Kely, mulher de Paulo, quem também se aproximou para puxar conversa. “Ela também perguntou se éramos drogados. Ela só confiou na gente porque tinha espírito meio de hippie”, disse Mateus.
5º Dia (Domingo, 27)
Kely os levou para casa, deixou que tomassem banho e serviu refeições para eles. “Conversamos até de madrugada. Acordamos quase ao meio-dia (de domingo). Foi quando resolvemos olhar o Facebook e estavam lá todas aquelas reportagens sobre o nosso desaparecimento. Pensei: ‘Agora ferrou!’”, narrou Mateus.
Ao perceberem a situação, Paulo e Kely pediram os telefones dos pais ao casal, alegando que iriam avisar que os filhos deles estavam bem e para não se preocuparem. Em seguida, saíram, dizendo que iriam fazer compras em um supermercado. “Quando eles voltaram, estavam com os nossos pais. Foi aquela choradeira”, recorda Mateus.
Depois do reencontro, as famílias seguiram para uma delegacia para registrar o reaparecimento do casal de adolescentes. De volta às suas respectivas casas, Mateus e Kelly demonstram estarem ainda mais próximos e tentam tirar lições de todo esta aventura.
“Sabe que eu acho que ele é meio doido, aventureiro. Mas sou um pouquinho aventureira, senão, não toparia, não. O que eu aprendi é que ainda não sei bem o que é o mundo, mas esses cinco dias não vou dizer que foi uma m... Não foi, porque eu estava com ele; porque senão teriam sido. Mas realmente fugir de casa, viver na rua não é o que agente espera. Você vai passar frio, vai passar fome, vai pegar gripe e meu conselho é esse: para ninguém fugir de casa”, ensina Kelly.
“A experiência foi boa, principalmente a de dormir junto com ela. Ela tinha umas alucinações durante a noite. (...) Mas a gente pensou que a vida era boa lá fora, que a gente iria acampar normal, iria fazer fogo, para fazer comida na panela que a gente levou, mas não foi. Deu muito medo, você ficar sem comida, ficamos com muita dor por causa da bagagem, dor nas costas, nos pés, na cabeça, pegamos muito frio. A maior parte do caminho foi de muita preocupação por causa dela, com medo de que nos assaltassem, perdi horas de sono. Depois de saber que estavam atrás de nós, veio aquele clima de esperança que iriam nos deixar juntos. Mas o que estava ruim foi resolvido. Melhorou bastante o diálogo”, confirma Mateus.
“Na minha casa também”, completa Kelly, sem desgrudar a mão da do namorado durante toda a entrevista.
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