RIO — O cineasta português Manoel de Oliveira morreu na manhã desta quinta-feira, aos 106 anos, em sua casa no Porto, vítima de uma parada cardíaca. Em noventa anos de uma premiada carreira, ele produziu mais de 30 longas-metragem, mantendo uma média de um filme por ano desde 1985.
"Se penso em parar? Se paro de filmar, me aborreço e morro. Tenho na cabeça um monte de projetos. Mas agora não sei se a vida vai me dar tempo de fazê-los.", disse o cineasta que lançou seu último filme, "O Velho do Restelo", no Festival de Veneza em 2 de setembro de 2014, poucos meses antes de completar 106 anos de idade.
DE PILOTO DE CORRIDAS A CINEASTA DE NARRATIVAS LENTAS
Um cineasta de narrativas tidas como lentas, o português Manoel de Oliveira foi piloto de corridas antes de abraçar o cinema. Sua primeira visita ao Brasil ocorreu em 1938, quando, aos 26 anos, competiu no circuito da Gávea, um traçado de 11 km que contornava o morro Dois Irmãos, da Marquês de São Vicente até a avenida Niemeyer. A prova foi vencida pelo italiano Carlo Pintacuda, “o heroi da Gávea”. Sem que tenha sido registrada na história a colocação em que terminou, a passagem de Oliveira permaneceu só na memória do cineasta, que narrava a destreza extrema necessária para enfrentar as mais de cem curvas do percurso.
Nascido no Porto, em uma família rica, com raízes no setor industrial, Manuel Cândido Pinto de Oliveira interessou-se primeiro pelos esportes — ginástica, natação e atletismo, além das corridas. Só depois veio o cinema, levado pelo pai para assistir aos filmes do inglês Charles Chaplin (1889-1977) e do francês Max Linder (1883-1925).
Já desportista, aos 20 anos inscreveu-se na Escola de Atores de Cinema. Em 1928, foi figurante em “Fátima milagrosa”, de Rino Lupo. Em 1931, conclui seu primeiro filme, “Douro, Faina Fluvial”, documentário que dividiu a crítica. Já desde aí a lentidão do desenrolar da ação é apontada como falha. Ao longo dos anos, somaram-se acusações de que dava mais importância às palavras do que aos atos. A câmara raramente se deslocava e, quando o fazia, eram movimentos sutis para mostrar um objeto ou as expressões corporais de um ator.
Com mais de 70 anos de carreira e algumas dezenas de filmes depois, ainda enfrentaria as mesmas críticas e respondia: “A ideia de que o cinema é movimento ilude. Quando se diz que o cinema é movimento pergunta-se: é o movimento dentro do quadro ou é a câmera a virar cambalhotas? Hoje o cinema, em razão das facilidades que as máquinas têm de se moverem, tem excesso de movimento da câmera. Vai, procura, sobe, desce... Às vezes, estonteante. Quanto mais a técnica avança, mais eu recuo, porque a técnica desumaniza”.
ESCASSEZ DE FILMES DURANTE A DITADURA DE SALAZAR
Em 1942 dirigiu "Aniki Bobó", relato de um grupo de crianças nas ruas do Porto, precursor do neorrealismo italiano. Lançado no meio da Segunda Guerra Mundial e no auge do regime de Antonio Salazar, o filme foi mal recebido pelo público. Oliveira então passou a se dedicar aos negócios da família e só voltou ao cinema 14 anos depois, com o curta-metragem "O pintor e a cidade" (1956).
Mas um novo longa viria apenas em 1963, quando lança "O Ato da Primavera", mistura de documentário e ficção no qual é encenada uma celebração popular da Paixão de Cristo. No ano seguinte, alguns diálogos no média metragem "A caça" lhe renderiam dez dias de prisão.
“Foi uma experiência horrível. Não tanto pelas privações ou incômodos físicos. Não fui espancado nem torturado, mas pela intolerável monotonia. Enterrado vivo, pensei em suicidar-me várias vezes. Chorava de tédio. Dava murros nas paredes”, narrou em uma entrevista.
Com a censura e a falta de financiamento, os trabalhos de Oliveira nessa época são escasos em número e duração. Na maior parte das vezes ele produzia média metragens. Apenas em 1972 retorna à ficção com "O passado e o presente" e dois anos depois, com a Revolução dos Cravos, dá início a um novo período criativo. Com o tempo acabaria recuperando parte do material iniciado e não completado durante o difícil período da ditadura, como é o caso do livreto no qual se baseia seu filme "O estranho caso de Angélica", de 2010.
— Foi sensacional ser dirigida por ele. Considero uma experiência do mesmo nível das que tive com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos — diz Ana Maria Magalhães, atriz brasileira que atuou em "O estranho caso de Angélica". — Manoel de Oliveira era um dos grandes do cinema, um artista completo. Ele desenvolveu um estilo próprio de trabalho. Lembro que o centro do quadro é sempre iluminado. Ele era muito vigoroso com a marcação do texto. Tinha um ar teatral, mas Manoel tinha uma cultura de cinema fabulosa. Ele fala de Portugal e do Brasil de uma maneira extraordinária. Estou sentindo muito essa morte.
Manoel de Oliveira obteve reconhecimento internacional a partir dos anos 60, em especial após mostra de sua obra na Cinemateca de Henri Langlois em Paris, em 1965. Vinte anos depois, ganhou o Leão de Ouro em Veneza com “Le soulier de satin” (1985). Levou a Palma de Ouro de Cannes por “A Divina Comédia” (1991). Ganhou ainda outro prêmio em Cannes por sua cinematografia.
Em 2009, estreou "Singularidades de uma rapariga loura", protagonizado por seu neto, Ricardo Trepa. Oliveira se baseou num conto homônimo de Eça de Queiroz, transferindo a história do século XIX ao século XXI. Depois realizou, com Pilar López de Ayala como atriz principal, o já mencionado "O estranho caso de Angélica'.
Quando completou 100 anos, em 2011, teorizou sobre a maturidade: “Com a idade, perde-se a juventude, mas, à medida que se perde a juventude e certas vitalidades próprias da juventude, aumenta-se a sabedoria, a prudência e várias outras qualidades. Enfim, Deus dá as nozes a quem não tem dentes”.
FILME INSPIRADO EM MACHADO DE ASSIS ESTAVA NOS PLANOS
Já era o cineasta mais velho do mundo em atividade. “Faço um cinema de resistência, porque o cinema abusa em excesso da violência pela violência, do sexo pelo sexo e isso não leva a nada, só estimula a um tipo de desumanização”, dizia.
Sem diminuir o ritmo, fez um par de curtas — entre eles "Do Visível ao Invisível", parte do filme coletivo "Mundo Invisível" — e lançou em Veneza "O gebo e a sombra", em 2012, com Claudia Cardinale, Michael Lonsdale, sua musa Leonor Silveira e Jeanne Moreau, sobre as consequências da crise econômica em Portugal e na Europa.
Seu penúltimo trabalho foi "O conquistador conquistado", um curta metragem inspirado na escolha de Guimarães como Capital Européia da Cultura, em 2012. Em abril do ano passado rodou seu último filme, "O Velho do Restelo", com seus habituais parceiros Luís Miguel Cintra, Diodo Dória e Ricardo Trepa.
Planejava filmar o longa-metragem “A Igreja do Diabo”, a partir de contos de Machado de Assis, tendo nos papéis principais Lima Duarte e Fernanda Montenegro, dois atores dos quais gostava bastante. “Admiro muito a naturalidade dos atores brasileiros”, afirmava. Lima Duarte o havia encantado desde o papel de Zeca Diabo em “O Bem-Amado”. Fernanda Montenegro chegou a ser convidada para o papel principal de “O Estranho Caso de Angélica” (2010), mas já havia assumido compromissos antes de seu contato.
Para escrever o roteiro do filme baseado nas obras do escritor brasileiro, Oliveira encorpou o conto “A Igreja do Diabo” com outros dois, também de Machado, "Missa do Galo" e "Ideias do canário".
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