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Saúde

O choque está de volta para tratar doenças

O choque está de volta para tratar doenças

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:28

Filipe Azevedo, 20 anos, estava na praça de alimentação da Universidade Mackenzie, em São Paulo, quando uma estudante de psicologia perguntou se poderia passar uma corrente elétrica por seu cérebro. Ele disse que sim. Pouco tempo depois, Julia Horta ajeitava duas almofadas azuis com eletrodos na cabeça dele. Ela pegou uma caixa pouco maior que um radinho de pilha e, devagar, girou um botão, aumentando a intensidade da eletricidade aplicada no escalpo do voluntário.

A cena remete aos eletrochoques que causavam convulsão e faziam detentos em manicômios estrebuchar, mas não é nada disso. “O que tem ali é uma bateria de 9 volts”, diz o pesquisador Paulo Boggio, coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social do Mackenzie. Sim, a mesma pilha que move carrinhos de controle remoto. “A corrente máxima é de 2 miliamperes. A maioria não sente nada.” Como comparação, a antiga eletroconvulsoterapia, que produzia padrões cerebrais semelhantes aos de um ataque epilético, ia de 500 a 900 miliamperes.

CÉREBRO HACKEADO

O estudo do qual Filipe participa é uma das dezenas de novas pesquisas que tentam ligar uma bateria à cabeça para mudar o funcionamento de partes do cérebro aplicando correntes elétricas fracas. A técnica, chamada estimulação transcraniana por corrente direta (conhecida por tDCS, em inglês), passa por uma recente explosão de interesse: dos quase 500 artigos científicos existentes sobre a prática, mais da metade foi publicada de 2009 para cá.

As pesquisas começaram a aumentar em 2000, quando os cientistas alemães Michael Nitsche e Walter Paulus mostraram que esse tipo de estimulação podia modular a atividade do cérebro. Basicamente, significa que é possível “hackeá-lo”, fazendo com que ele tenha desempenho melhor em algumas tarefas. De lá para cá, a técnica é testada contra a depressão e, mais recentemente, na melhoria de memória visual, aptidão matemática, coordenação motora e criatividade.

Como funciona? As células cerebrais trabalham com eletricidade. Um neurônio realiza uma sinapse (se comunica com um vizinho) quando seu estado de excitação elétrica supera um limite. A aplicação de corrente pela tDCS pode aumentar ou reduzir esse limite, facilitando ou dificultando a ocorrência da sinapse (veja quadro na página ao lado).

No experimento de Filipe, por exemplo, o objetivo é fazer a pessoa lembrar melhor das imagens que vão aparecer na tela do computador durante o teste, e enfraquecer a memória semântica — a associação dessas imagens a conceitos preconcebidos. (Leia mais sobre memória na pág. 38) “A memória semântica é importante porque nos permite formar conceitos. Mas ela também pode causar erros por associação”, diz Boggio. Um exemplo aparece numa espécie de racismo instintivo: estudos mostram que brancos tendem a achar negros mais ameaçadores que outros brancos. O que o pesquisador tenta fazer é inibir esse tipo de associação automática para melhorar a memória visual.

CHOQUE DE MUDANÇA

Há evidências de que a tDCS possa turbinar o cérebro de outras formas. Recentemente, uma equipe dos Estados Unidos usou a técnica em voluntários que jogavam um game de guerra. Financiado pela Darpa (departamento do Pentágono dedicado à pesquisa), o estudo mostrou que ligar uma bateria de 9 volts à cabeça faz com que os jogadores melhorem bastante o desempenho no game, acelerando o aprendizado.

De acordo com os estudiosos, a descoberta sugere que os microchoques poderiam ajudar soldados a identificar mais rapidamente ameaças no campo de batalha. “A tDCS faz com que alguns neurônios se tornem mais ativos e outros menos”, explica Vincent Clark, Ph.D. em psicologia e professor da Universidade do Novo México. O autor do estudo diz não saber o que o exército americano pretende fazer com os resultados, “se é que pretende fazer alguma coisa”.

Outro achado foi obtido em 2010 por cientistas da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que conseguiram melhorar a perícia matemática de voluntários por meio de corrente elétrica fraca. Ao estimular o lobo parietal, área cerebral relacionada ao processamento de números, eles fizeram com que os participantes melhorassem a habilidade de lidar com novos símbolos numéricos. “O efeito de melhoria durou 6 meses”, comenta o cientista Roi Cohen Kadosh no estudo.

A possibilidade de melhorar a memória visual também foi demonstrada em uma pesquisa da Universidade de Sydney, na Austrália. De acordo com estudo do cientista Richard Chi, as pessoas que receberam os estímulos tiveram um desempenho 110% melhor em testes desenvolvidos para avaliar a memória visual. O mesmo Chi, estudante de Ph.D. do Centro Para a Mente da universidade, ganhou menções da imprensa científica neste ano após desenvolver um método que parece melhorar a criatividade com os microchoques. Em seu estudo controlado, participantes que receberam estimulação elétrica se saíram melhor em problemas que requeriam insights para serem resolvidos.

Outros efeitos de mudança cerebral foram mostrados pela equipe de Boggio, do Mackenzie, que já conseguiu usar a corrente elétrica para tornar apostadores em jogos mais ou menos cautelosos, reduzir a fissura de viciados e tratar a depressão.

DANOS MENORES

O foco da maioria dos estudos, por enquanto, não está em melhorar gente saudável, mas em descobrir algo que pode ser um grande salto em tratamentos: alterar o comportamento dos neurônios sem os efeitos colaterais provocados por drogas. “A tDCS pode se focar em uma parte menor do cérebro e do corpo, sem afetar os rins ou o fígado.

Pode até ser mais segura”, afirma Vincent Clark. Esse efeito abre as portas para que seja possível no futuro tratar de forma menos invasiva depressão e dor crônica ou recuperar vítimas de derrames. Uma técnica parecida, a estimulação magnética transcraniana (TMS), é aprovada desde 2008 nos EUA para o tratamento de alguns casos de depressão. Em vez de dar pequenos choques, ela estimula o cérebro com campos magnéticos.

Para o psiquiatra Moacyr Rosa, que usa a TMS em sua clínica em São Paulo, é preciso conduzir mais estudos antes de usar a nova terapia em consultórios. “Não existem dados suficientes para uso clínico. Mas a tDCS está ajudando a entender o cérebro.” Caso venha a se mostrar útil para a medicina, a técnica baratearia tratamentos: os equipamentos que geram corrente para estimulação custam a partir de R$ 400, segundo Boggio. Já os instrumentos utilizados na TMS têm preço da ordem de R$ 40 mil.

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