Relações paralelas em pauta no STF

O Tribunal Pleno deverá decidir se têm ou não efeitos jurídicos as relações de mancebia, popularmente chamadas de relações de amantes.

Fonte: Guiame, Regina Beatriz Tavares da SilvaAtualizado: terça-feira, 1 de outubro de 2019 às 19:21
(Foto: Reprodução/ADFAS)
(Foto: Reprodução/ADFAS)

Em 25 de setembro de 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.045.273/SE sobre o tema 529: “Possibilidade de reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva concomitantes, com o consequente rateio de pensão por morte.”.

A esse tema foi dada repercussão geral, de modo que o Tribunal Pleno deverá decidir se têm ou não efeitos jurídicos as relações de mancebia, ou seja, as relações paralelas a uma união estável, popularmente chamadas de relações de amantes.

A Procuradoria Geral da República manifestou-se pelo improvimento do recurso, em razão da fidelidade, que é dever no casamento e na união estável, o que leva ao conceito de exclusividade, que não pode ser menosprezada sob pena de subversão dos valores que estruturam a estabilidade do matrimônio no contexto ocidental e perda da credibilidade da entidade familiar como base da sociedade. Acentuou que a duração de uma relação paralela não interfere na impossibilidade de atribuição de efeitos previdenciários, que não podem ser concedidos diante da existência de impedimentos para o casamento, observando, assim, a equiparação da união estável ao casamento.

A Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) participa como amicus curiae nesse Recurso Extraordinário de repercussão geral e sua presidente, a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, realizou sustentação oral pelo improvimento do RE 1.045.273/SE. Defendeu o reconhecimento de efeitos jurídicos somente a uma relação, não cabendo a divisão de pensão previdenciária entre o titular do benefício, titularidade esta decorrente de uma relação de família – viúvo/a ou filhos -, e o partícipe da relação paralela com a pessoa falecida. Isto porque é princípio estruturante da união estável, assim como do casamento, a monogamia, na conformidade do art. 226, § 3º da Constituição Federal e da tese firmada pelo STF no julgamento da ADPF 132 e na ADI 4.277 em 05/05/2011, quando reconheceu a união estável homoafetiva. Uma relação paralela não pode ser havida como entidade familiar no conceito constitucional e infraconstitucional de união estável. O paralelismo equivale à bigamia – duas relações concomitantes – não só no casamento, mas, também, na união estável, de modo que uma relação paralela não pode ser reconhecida como entidade familiar e produzir efeitos previdenciários, que se baseiam nos conceitos do direito de família na concessão de pensão previdenciária post mortem (assista a sustentação oral https://www.youtube.com/watch?v=72v649KT0HE&t=5s).

A Academia Paulista de Letras (APLJ) manifestou integral apoio à ADFAS no RE 1.045.273/SE.

Foi bem esclarecido na primeira seção de julgamento que o STF não está (re)julgando se as relações homoafetivas merecem proteção jurídica, o que já foi reconhecido na ADPF 132 e na ADI 4277, em 2011.

No RE 1.045.273/SE em pauta, nada importa se a relação foi homo ou heteroafetiva, o STF está julgando se quem manteve uma relação paralela pode ser beneficiado com a pensão por morte, ou seja, está em pauta se um amante, na linguagem comum, ou concubino, na terminologia jurídica, pode ter direitos previdenciários.

Votaram pelo improvimento do RE 1.045.273/SE e pelo reconhecimento de que não cabe em nosso ordenamento legal a atribuição de efeitos jurídicos em relações paralelas, devendo somente a relação que tem natureza de entidade familiar produzir esses efeitos, o Relator, Ministro Alexandre de Moraes e também os Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

O Relator, Ministro Alexandre de Moraes proferiu voto elogiável fundamentado na equiparação da união estável ao casamento e, consequentemente, na impossibilidade de reconhecer direitos em relação paralela a uma união estável. Assim como não tem efeitos jurídicos uma relação paralela a um casamento, não podem ser reconhecidos esses efeitos a uma relação paralela a uma união estável. E bem argumentou que se fosse possível o reconhecimento de duas uniões estáveis, seria também possível o reconhecimento da validade de dois casamentos. Desse modo, se fossem reconhecidas duas uniões estáveis concomitantes, o STF estaria aceitando a bigamia. O art. 226, caput da Constituição Federal, ao estabelecer que a família tem especial proteção do Estado realizou uma grande conquista, que foi reconhecer a entidade familiar na união estável e igualá-la ao casamento, possibilitando a conversão da união estável em casamento, evitando-se a discriminação que existia em relação à união estável, daqueles que não tinham “papel passado”; assim a união estável se igualou ao casamento, portanto, sempre em monogamia. A união estável foi equiparada ao casamento para que tenha todos os direitos do matrimônio, adquirindo os ônus e os bônus, ou seja, os ônus da fidelidade e os bônus do reconhecimento de todos os direitos, salientou o Ministro Relator. Não se trata de afastar o afeto entre duas pessoas, trata-se de acatar o ordenamento jurídico brasileiro, que não admite a concomitância de duas relações com efeitos jurídicos, observou. E finalizou afirmando que seria o mesmo que aceitar a bigamia, com a conclusão lógica de que só se poderia dividir a pensão previdenciária se fosse admitida a concomitância de dois casamentos ou de um casamento e uma união estável ou de duas uniões estáveis (https://www.youtube.com/watch?v=Y932RN4-Yqg).

O Ministro Ricardo Lewandowski (https://www.youtube.com/watch?v=flCrNydBBwk) e o Ministro Gilmar Mendes(https://youtu.be/HP61kvRhqRg), também com votos de excelência, pronunciaram-se no mesmo sentido do voto do Relator, Ministro Alexandre de Moraes.

O Ministro Ricardo Lewandowski citou o acórdão proferido no RE 397.762/BA, como paradigma do recurso que está em pauta. Bem acentuou a impossibilidade de remover fatos e provas em recurso extraordinário, de modo que não seria ortodoxo reconhecer que houve uma união estável na relação em tela, sendo que a relação da viúva foi reconhecida judicialmente, conforme consta dos autos. Citou o disposto no art. 226, § 3º , que incentiva a conversão da união estável em casamento, sendo aquela um embrião deste. E bem observou que a publicidade é elemento essencial do reconhecimento de uma união estável, na conformidade do ordenamento legal, e que a clandestinidade, que é inerente a uma relação paralela, impede o reconhecimento de uma entidade familiar.

O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, enfatizou que a regra constante do Código Civil ( art. 1723, § 1º), especificamente no que se refere ao requisito da inexistência de comunhão de vidas de uma pessoa que mantenha o estado civil de casado, ou seja, a separação de fato, para que possa manter uma relação em forma de união estável aplica-se à união estável, o que impede a concomitância de duas relações de fato com efeitos jurídicos. Destacou a insegurança jurídica que se instalaria pelo reconhecimento de duas uniões estáveis concomitantes.

Votaram em favor da divisão da pensão os Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio.

O Ministro Luiz Edson Fachin (https://youtu.be/GUHM3nDw1_k) acentuou que está em pauta somente se uma relação paralela pode gerar benefícios previdenciários e não outros efeitos jurídicos, como comunhão de bens, direito à herança etc. Segundo seu voto, o STF está debatendo somente a divisão da pensão entre o viúvo/a ou o filho e a pessoa com quem o falecido manteve uma relação paralela, assim como observou que a boa-fé objetiva deve nortear a análise, porque seria presumida. Consta do seu voto o seguinte: “Ademais, a boa-fé se presume, inexistente demonstração em sentido contrário, prevalece a presunção, especialmente porque não se cogita de boa-fé subjetiva e sim de boa-fé objetiva. Desse modo, uma vez não comprovado que ambos os companheiros concomitantes do segurado instituidor, na hipótese dos autos, estavam de má-fé, ou seja, ignoravam a concomitância das relações de união estável por ele travadas, deve ser reconhecida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes.” (Migalhas e Conjur).

O Ministro Luís Roberto Barroso (https://youtu.be/3hgHRpzHwBc) acentuou ser “curiosa e inédita” a situação do caso que chegou ao STF, examinando os fatos do processo, porque o recorrente teria mantido uma união estável “convencional” e uma união estável “homoafetiva” simultânea e prolongadamente, pelo menos durante 12 anos. Assim, passou a examinar matéria de fato, inclusive afirmando que pelos elementos processuais de que tomou conhecimento não haveria prova sobre qual teria sido a primeira relação, qual teria começado primeiro. Além disso, ao fazer referência ao RE 397.762/BA, salientou que naquele caso há vedação expressa ao reconhecimento de união paralela a casamento, no artigo 1723, § 1º do Código Civil, enquanto esse impedimento não existiria em relação simultânea a uma união estável. E, por fim, segundo o Ministro Barroso, houve uma expansão na Constituição Federal na proteção de situações de fato, sendo a monogamia princípio estruturante do casamento e não da união estável. Segundo seu voto, não existe regra expressa sobre monogamia na união estável. Além disso, continuou argumentando que a alocação da pensão previdenciária versa sobre relação já finda, em que o fato existiu, sendo necessário dar alguma consequência jurídica a esse fato. Observou também que não estaria em questão a matéria de família, mas, sim, somente uma questão predominantemente previdenciária. Propôs a seguinte tese: “É constitucional a divisão da pensão por morte entre duas pessoas que mantiveram paralela e concomitantemente relações equiparáveis a união estável com o mesmo indivíduo já falecido.”

A Ministra Rosa Weber (https://youtu.be/kacMXszxk-U) afirmou que deve ser privilegiado o casamento, concluindo que não cabe a sua equiparação à união estável, além de aplicar a mesma principiologia que informa o direito do trabalho, que é o princípio da realidade, com o reconhecimento de efeitos jurídicos a situações fáticas que não encontram óbice na legislação brasileira.

A Ministra Cármen Lúcia (https://youtu.be/PBLckhGQGGw) citou acórdãos anteriores de sua relatoria, afirmando que no MS 33.555/DF foi negado o rateio dos benefícios previdenciários porque não havia a conclusão de uma separação no casamento e em outro recurso observou que era inconclusiva a existência de relação simultânea, sendo que no recurso em pauta estaria comprovada a simultaneidade. Acentuou que somente em efeitos previdenciários reconhecia a concomitância de duas uniões estáveis.

No mesmo sentido, o voto do Ministro Marco Aurélio (https://www.youtube.com/watch?v=jTjnJMf-7LY), que observou ser diferente o caso em análise de outro que se tornou paradigma, aquele constante do RE 397.762/BA, em que foi relator e não concedeu benefícios previdenciários porque a relação era paralela a um casamento e não a uma união estável. Assim, concluiu por desigualar a união estável em relação ao casamento.

Data venia, a partir do julgamento pelo STF do RE 878694/MG e do RE 646.721/RS, em 2018 sobre o tema de repercussão geral da equiparação dos efeitos sucessórios da união estável aos do casamento, em que foi firmada a tese de que “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”, desigualar cônjuges e companheiros passa a ser uma incongruência. O argumento de que se houvesse casamento não caberia a atribuição de efeitos jurídicos a uma relação paralela e que por haver uma união estável a atribuição de efeitos jurídicos à relação simultânea é cabível entra em conflito com o que foi decidido anteriormente pelo STF. E não se trata de mudança de tese, o que poderia ser aceitável, já que não foi alterada a tese do RE 878.694/MG e do RE 646.721/RS.

Data venia, é preciso ter em conta o extremo risco que pode causar o reconhecimento pelo STF de uma união estável, com análise da situação fática dos autos e das provas, numa decisão em forma de repercussão geral, que, portanto, se aplicará aos demais casos, sejam idênticos, sejam apenas assemelhados. Afinal, como pontuou o Ministro Barroso, o recurso trata de uma situação inédita e, portanto, incomum.

Data venia, a atribuição de um benefício previdenciário abre a porta, para não dizer que escancara o portão, para outros direitos serem atribuídos às relações paralelas, como os direitos de família e os direitos de herança. O direito previdenciário tem de dialogar com o direito de família, afinal, é com base nos conceitos deste ramo do direito que são atribuídos benefícios previdenciários post mortem.

Data venia, parece não ser apropriado que se reconheça como família um fato em que não estão preenchidos os requisitos da união estável, que, como entidade familiar, é a base da sociedade.

Data venia, a boa-fé não se presume numa relação putativa em se tratando de bigamia, muito menos pode ser presumido o desconhecimento da relação de união estável ou boa-fé de quem mantém uma relação paralela prolongada.

O julgamento do RE 1.045.273/SE terá continuidade em razão do pedido de vista do Ministro Dias Toffoli. Assim, faltam ainda 3 votos para o STF decidir sobre a existência ou não do direito de um amante dividir a pensão por morte com o viúvo/a ou o filho de uma pessoa falecida, o voto do Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, e os votos dos Ministros Luiz Fux e Celso de Mello, que compõem o Pleno.

Por Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada.

* O conteúdo do texto acima é de colaboração voluntária, seu teor é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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