A esperança também nasce da angústia

A esperança também nasce da angústia

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:08

 

triste
 
O dia nasce precoce. Antes do sol enfurecer, amanheço com uma sede diferente. Desperto. Não consigo nomear o que me falta. Pode também ser uma fome crônica. Há anos convivo com o vazio existencial comum a santos, poetas, bardos, palhaços, boêmios. Sofro de SND – Síndrome da Nostalgia Difusa.
 
Minha alma não se conforma com a presença viva dos que morreram. Quero mamãe de volta. Ela parece perto. Digo que vou segredar-lhe certas percepções tardias do meu coração. Pego o telefone e aguardo, instintivamente, que alguém me atenda do outro lado da linha. Desisto. A Glícia dorme no armário de minhas memórias.
 
Melancólico, procuro cheiros, sabores, fotografias, músicas, que tragam o passado soterrado na poeira de décadas. A dor aumenta. Bisonho, tento espairecer. Corro; os quilômetros me encharcam de suor, continuo inconsolável.
 
Meus olhos não se aquietam se prevalece a palidez de viver. Condiciono-me a mirar o mundo refulgente. O sofrimento universal, injusto e desproporcional, entretanto, agride. Brotam falsas culpas. Por que fui privilegiado em um mundo desigual? Meus esforços para aliviar o suplício da miséria se mostraram pífios. Não discerni as estruturas demonizadas da política que discrimina, privilegia, marginaliza. Quando cheguei a compreender os perigos do poder, estava fatigado e sem disposição para vestir a capa de profeta. Angustiado, não me contento em falar às paredes que a corrupção sistêmica, os vícios históricos, as maquinações das elites, não cumprem desígnios da Providência. Morrerei acreditando que miséria, injustiça e preconceito representam um acinte à divindade.
 
Meu coração não se pacifica com os lenitivos episódicos da vida. Uma força estranha impulsiona o meu espírito a desejar o que desconheço. As delícias de uma viagem programada se esgotam no estresse do aeroporto. Quando cessa a festa, fica uma sensação de fim-de-tarde. Depois de assinar um título de propriedade sei que ainda assim, não direi à alma: “Descansa, agora tens em abundância”. Meus “ses” parecem os do Chico. O que será que será que tanto quero e que vive nas ideias desses amantes/ Que cantam os poetas mais delirantes/ que juram os profetas embriagados/ está na romaria dos mutilados/ está nas fantasias dos infelizes/ está no dia a dia das meretrizes?
 
Soli Deo Gloria
 
 
Ricardo Gondim

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