Não sei se por imaturidade, nunca me acostumei com o jogo bruto da vida. Reluto ao notar que fui jogado na existência. Nasci sem escolha de lugar, tempo ou família. Em meus longos – e preciosos – anos da infância, não percebi que pessoas, classes, grupos e instituições hierarquizam interesses. Todos ávidos por continuar a se beneficiar da injustiça. Ingênuo, subestimei a maldade sistêmica, e sofri.
Me angustio por recusar deixar coturnos sobre o meu pescoço. Sei que, na corrida alucinada pela sobrevivência, raposas, hienas e abutres se alvoroçam em tempos de crise. Para eles, quanto pior, melhor. O caos desperta monstros. Os micróbios, parasitas da desordem, esperam se multiplicar no tecido podre da miséria.
Refiro-me a interesses políticos. Muitos enxergam o exercício do poder como chance de rebocar seus tapumes execráveis. Não sei se aguentarei ouvir mais uma promessa de campanha eleitoral. O discurso comezinho, dito e repetido no palanque, me soa como panaceia que encobre um projeto de poder. Não vejo verdade no jogo bruto da política. Isso desalenta o meu coração.
Mas a decepção não se resume à política. Sou cria do mundo religioso. Estou des-iludido com a lógica infantil, ensimesmada e desconectada da vida, que o clero propagandeia. Noto um descaso cínico com as brechas que separam discurso e prática. Aceito o diagnóstico de Cioran: a irrealidade não pode triunfar, indefinidamente, nem mesmo disfarçada com a aparência da mais estimulante mentira. Por enquanto, a minha des-ilusão me fez bem – por me devolver à realidade. Receio, entretanto, que ela tenha força de me empurrar para a indiferença.
Não tolero que pessoas continuem mobilizadas espiritualmente pelo medo. Religiosos descrevem um porvir de horror, falam do furor do inferno e tentam achar quem podem mandar para lá. Os homossexuais se tornaram inimigos, que não só devem ser anulados como danados. Poucos notam que neofundamentalistas procuram transformar homens e mulheres em argumento que alavanca projetos também de poder. Eles cavam trincheiras e demonizam pessoas reais – com dramas concretos – para fazer valer um discurso que gera pavor.
Enquanto isso, iniquidades dos bastidores religiosos permanecem intocadas. E Jesus de Nazaré continua sendo crucificado pelo sacerdote narcisista-caça-hereges-pseudo-teólogo-autopromovido apóstolo.
Não me percebo santo. Não tenho a palmatória do mundo. Também entrei na rinha político-religiosa em nome de Deus. Reproduzi em inúmeras pregações a piedade melosa, doce-enjoativa, da alienação. Todavia, de tanto errar, de tanto cegar os olhos para as minhas próprias inadequações e conveniências e de tanto repetir obviedade, dei-me conta da força do entorpecimento ideológico-religioso em que estava metido.
Agora, gasto energia para preservar a alma. Procuro o convívio despretensioso de quem ama a poesia, escuta sabiás e bem-te-vis, gosta do silêncio, não vê diabo em cada esquina e não pratica alpinismo social em nome da democracia ou do sagrado. Depois de todos os momentos que vivi, com todas as alegrias que experimentei e todas as decepções que amarguei, procuro me manter capaz de me elevar acima da indolência, animado pela esperança.
Soli Deo Gloria
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