O alvorecer da vida

O alvorecer da vida

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 9:06
esperançaLugar comum é aquele tipo de expressão desgastada, massificada, repetida a torto e a direito. Lugar comum é chavão que pode vir como frase ou combinação de palavras, mas que de tão repetido, perde sua força original. Vira expressão vazia de conteúdo, superada, sem imaginação.
 
Quando se soma linguagem religiosa às dimensões da vida, o chão fica fértil para brotarem palavras desgastadas.
 
Religioso adora falar de esperança sem saber exatamente ao que se refere. Com a banalização da teologia da prosperidade, menciona bênção sem desdobrá-la em miúdos. Nos cultos impregnados de culpa, repete o lugar comum das cobranças e das listas de compromissos: orar mais, ler disciplinadamente a Bíblia, fazer regime, voltar a cantar no coral. Promessas e mais promessas são feitas mesmo sabendo, de antemão, que tudo será engavetado no decorrer da semana. Piedade instrumentalizada pelo lugar comum não passa de platitude, voto vazio.
 
A vida vem e passa. O janeiro de hoje é igualzinho ao do ano passado, ou do retrasado. Em meados de maio os anseios do reveillon envelhecem tanto que só resta o tédio. Repetem-se em agosto, todos os agostos já vividos. Carlos Drummond de Andrade adverte: Para ganhar um ano novo que mereça este nome/ Você, meu caro, tem de merecê-lo/ Tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil/ Mas tente, experimente, consciente/ É dentro de você que o ano novo cochila e espera desde sempre.
 
Acomodar a vida a chavões abre espaço para o fatalismo. Quem sabe, as engrenagens do destino se revertam e a Fortuna, deusa da sorte, bata na porta da vida. O problema é que Fortuna premia indiscriminadamente. A maioria dos mortais acorda todos os dias tendo que enfrentar a mais dura realidade – viver, para muitos, custa mais que o suor do rosto.
 
Ninguém se esquiva dos seus dramas com jargões religiosos. Exorcizar os males da vida com pensamentos piegas, não passa de coreografia. Placebo religioso. Orações decoradas ou repetidas são impotentes para gerar realidades históricas. Hannah Arendt, filósofa que buscou entender a mente dos assassinos nazistas durante o tribunal de Nurembergue, inquietou-se com os generais de Hitler. Eles respondiam às perguntas dos promotores com clichês. Arendt concluiu: Clichês, frases feitas, adesões a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência.
 
A vida não acontece a cada volta que a Terra dá ao redor do sol, mas na cadência do coração. O futuro não se concretiza pela simples cronologia do tempo, mas na sequência das decisões. Cada gesto, palavra ou atitude plantados geram consequências. Por isso, Paul Ricoeur repensou fé, acertadamente, como uma oportunidade convertida em destino através das constantes escolhas. O desdobramento causado por escolhas anteriores representa uma nova etapa na vida.
 
O presente é o prólogo do futuro – princípio da famosa lei da semeadura: O que o homem plantar, isso ele colherá - Gl 6.7. Mais pragmático, o provérbio adverte (22.8): Aquele que semeia a injustiça segará males. Ninguém deve esperar mais segurança para as cidades brasileiras e menos fome nos sertões abandonados no grito de palavras de ordem das ruas. É necessário que se desmantelem as estruturas perversas que promovem a morte para a justiça fluir como ribeiro. Transformar a realidade requer engajamento político com consciência revolucionária. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.
 
Vida nova não simboliza um portal para o paraíso. Transformação lembra apenas que a vida flui inexorável e se as pessoas não forem proativas, a entropia acontecerá, inclemente.
 
Quem deseja viver de verdade, que fuja do cinismo, sepultura das palavras sem espírito; rejeite o ceticismo, asfixia dos sonhos; abomine o rancor, regurgito dos ódios acumulados; despreze a avareza, paralisia da bondade; desdenhe da vaidade, idolatria de si.
 
Melhor sentir-se filho do que útil, amigo do que herói. Dominar o espírito é melhor que conquistar uma cidade -Provérbios 16.32. Vive quem agasalha afetos genuínos, única riqueza concreta, e semeia a verdade, promovendo concórdia. Norberto Bobbio,  jurista italiano, ao aproximar-se dos 87 anos de idade, escreveu sua autobiografia intelectual (O tempo da memória, Editora Campus) com ponderações graves:  Hoje alcancei a tranquila consciência, tranquila porém infeliz, de ter chegado apenas aos pés da árvore do conhecimento. Não foi do meu trabalho que obtive as alegrias mais duradouras de minha vida, não obstante as honras, os prêmios, os reconhecimentos públicos recebidos, que aceitei de bom grado mas não ambicionei e tampouco exigi. Obtive-as dos meus relacionamentos – dos mestres que me educaram, das pessoas que amei e que me amaram, de todos aqueles que sempre estiveram ao meu lado e agora me acompanham no último trecho da estrada.
 
Soli Deo Gloria
 
 
 
- Ricardo Gondim
 

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