Para que serve a utopia

A utopia ajuda a antecipar o tempo em que as fronteiras dos países se acabarão e com elas, os muros que segregam pessoas por etnia...

Fonte: Guiame, Ricardo GondimAtualizado: sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015 às 10:51
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Eduardo Galeano disse que a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Talvez nossa maior luta seja essa: não deixar esmorecer a determinação de seguir em frente. Indiferença é serpente de várias cabeças, prestes a dar o bote mortal que paralisa a gesta heróica.

O Brasil se tornou um dos países mais violentos e perigosos do mundo. O caos no Haiti se arrasta, crônico. O descontrole sócio-ambiental planetário afeta não só a produção agrícola como a própria viabilidade dos grandes centros urbanos – a próxima geração pagará um preço altíssimo com mais secas, mais tornados e furacões e mais inundações.

A humanidade não pode se esquecer: a invasão do Iraque e a condescendência mundial com a política agressiva de Israel na Palestina tendem a espalhar mais violência por todo o Oriente Médio – de novo a história mostra que é fácil começar uma guerra, mas as consequências ficam, séculos depois.

Com o esvaziamento de alguns mitos da modernidade, o mundo se vê em um contrapé histórico. O progresso sem limite e a agenda consumista do neoliberalismo se esgotaram diante da realidade grotesca de que mais de um bilhão de pessoas dormem com fome todos os dias. Depois de um século de promessas mirabolantes, sobrou uma ressaca, que imobiliza ideais e possíveis iniciativas que alterariam a história.

Reina a indiferença. Parece não sobrar força para sonhar com a construção de outro mundo possível. Porém, sonhar é preciso. Nossos filhos e filhas não merecem herdar um mundo assolado pelo desdém. Não podemos nos acovardar diante do horizonte que se distancia.

A utopia ajuda a trabalhar pelo alvorecer do dia em que os rios não contaminarão os oceanos. Os peixes não morrerão asfixiados em águas podres. O sol, menos abrasador, causará menos câncer. Releituras do Gênesis devolverão à humanidade a sacralidade do Éden. Todos nos comprometeremos com o cuidado do planeta, como um jardim.

A utopia ajuda a antecipar o tempo em que as fronteiras dos países se acabarão e com elas, os muros que segregam pessoas por etnia. Nos guichês de imigração, o pobre não será impedido de fugir de sistemas injustos e o doente será acolhido no hospital que salvará sua vida.

A utopia ajuda a prever o futuro em que espadas serão transformadas em arados; os bilhões de dólares gastos com armas e bombas serão relocados para tratamento de esgoto. Ao sonhar assim, acreditamos que fortunas desperdiçadas em cassinos incentivarão pesquisa pela erradicação da malária. Será inadmissível uma valise custar mais que anos de salário de um operário.

A utopia ajuda a valorizar mulheres anônimas como Teresa de Calcutá que lutam, em diversos continentes, para que a dignidade de todos seja reconhecida. Em nossos sonhos, profetas como Martin Luther King não serão raros.

Concebamos um mundo em que as penitenciárias políticas serão implodidas – ninguém jamais será preso por pensar diferente. No porvir, os instrumentos de tortura se tornarão peças macabras de museu. Não haverá lugar onde se maltrata em nome de ideologia, religião ou regime político.

A utopia ajuda a imaginar não existirem grampos. Espiões ficarão proibidos de bisbilhotar a privacidade das pessoas. O mundo se libertará das delações traiçoeiras. Os nossos filhos estarão conscientes do nosso dever de proteger o próximo.

A utopia ajuda a acabar com orfanatos. Meninos e meninas não precisarão ficar por nas filas de adoção. Também, os idosos nunca serão esquecidos em clínicas, à espera da morte.

A utopia ajuda a desejar que orquestras se multipliquem. Os prefeitos construirão coretos nas praças e as famílias se reunirão para ouvir boa música. Não será considerado delírio esperar que se projetem filmes em vilarejos e em cidades remotas. Bibliotecas ambulantes distribuirão poesia para os tristes e literatura para os sonhadores. As escolas treinarão malabaristas para a alegria das sextas-feiras. Trapezistas desafiarão a gravidade em picadeiros públicos.

A utopia ajuda a acreditar em milagre. Os experimentos com células-tronco darão certo. Os tetraplégicos serão curados e saltarão como gazelas rumo a uma nova vida. O projeto Genoma mapeará a estrutura da vida e diminuirá o número de crianças com deformidade genética.

A utopia ajuda a antever o fim do tráfico de pessoas. A pedofilia se tornará um anacronismo vergonhoso. Os cartéis de droga se desarticularão – o êxtase virá do encontro com a beleza, com a bondade e com a solidariedade.

A utopia ajuda a superar a bestialidade. Não vamos tolerar o pressuposto da sobrevivência do mais forte, ou da exclusão racial e da discriminação social. Optaremos pelo legado de sabedoria que promove o bem, represa o mal e dissemina a justiça.

A utopia ajuda a abrir os olhos: ficou tarde demais para cruzar os braços. Negligência ou indiferença pode redundar em desastre.

Soli Deo Gloria

 

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