Penitência sem carolice

Penitência sem carolice

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:08

 

acusaçãoSinto-me companheiro de certos personagens da Bíblia; suas características atormentadas me atraem. Pensei em mencionar alguns notórios pessimistas não-religiosos: Schopenhauer, Nietzsche, Cioran, Camus, mas pressinto celeuma. Além do mais, não seria honesto conformar-me tão estreitamente  a gente da estirpe de Fernando Pessoa, Carlos Drummond e outros; fora a náusea universal que mulheres e homens partilham, ando razoavelmente bem resolvido em diversas áreas.
 
Sou irmão de Asafe, o bardo que quase se perdeu ao mirar a prosperidade de gente ruim – (Sl 73). Não invejo nenhum rico. Contudo, a fortuna de alguns me deixa com uma pulga atrás da orelha. Não me conformo com o riso cínico da corrupção. Por que pessoas íntegras se desgastam por anos com testemunhos diminutos de seus avanços na prática do bem? Escroques alcançam notoriedade com desembaraço. A virtude parece tão difícil e o engodo, tão leve.  Igual a Asafe, sou tomado por cansaço e fastio diante da injustiça.
 
Vejo-me parceiro nas lamentações de Jeremias. Todos os dias, colocado cara a cara com a violência, não posso aceitar mulheres apanhando, negros ganhando salário menor, crianças morrendo em ambulatórios precários, traficantes aterrorizando. Semelhante ao profeta, pergunto: “Tu, Senhor, reinas para sempre; teu trono permanece de geração em geração. Por que motivo, então, te esquecerias de nós? Por que haverias de desamparar-nos por tanto tempo”? (Lm 5.19.20).
 
Sou atraído pela história de Oseias. Divido sua indignação contra sacerdotes que mercadejam esperança. Da medula dos ossos vem uma revolta contra a instrumentalização do sagrado em projetos pessoais. Não consigo admitir o subterfúgio de engrandecer a Deus como alavanca para tornar a instituição mais poderosa. Não partilho da euforia de grupos religiosos que celebram vertiginoso crescimento numérico. Será se não indagam: “vale a pena?”; inflam estatísticas e pouco se importam com o inferno existencial que aflige o mundo que dizem socorrer. Igrejas obcecadas com números multiplicam a neurose religiosa. “Quanto mais aumentaram os sacerdotes, mais eles pecaram contra mim; trocaram a glória deles por algo vergonhoso. Eles se alimentam dos pecados do meu povo…” (4.7- 8).
 
Com Miqueias, sou dramático. O desejo de copiá-lo talvez nasça do meu desespero de exorcizar o torpor que a mediocridade produz: “…chorarei e lamentarei; andarei descalço e nu. Uivarei como chacal e gemerei como um filhote de coruja. Pois a ferida de Samaria é incurável e chegou a Judá ” (1:8-9).
 
Já não estranho as circunstâncias em que Jesus falou com contundência. Identifico-me em sua exasperação. Tenho vontade de desabafar, depois de constatar que não fui ouvido: “Ó tardos e néscios de coração para crer…” (Lc 24.25). Semelhante a ele, ao perceber o encurtamento das pessoas, dou-me liberdade de dizer: “Ó geração incrédula e perversa, até quando estarei com vocês”? (Mt 17.17). Jesus considerou insuportável ver a casa de Deus apequenada, transformada em covil de ladrões – “O zelo da tua casa me devorará” (Jo 2.17). Não me culpo por denunciar: as mesas dos cambistas do templo são esquerosas.
 
Ao esticar um dedo na direção dos outros, reconheço, três apontam para mim. Não posso evitar Paulo: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará deste corpo de morte?” – (Rm 7.24). Admito minha inadequação sem carolice.  ”Eu sou o principal pecador” (1Tm 1.15).  Ensino, e quem ensina precisa saber que se candidata a “ser julgado com maior rigor” (Tg 3.1), daí a necessidade de ser honesto comigo mesmo.
 
De espírito quebrantado e contrito, dou as mãos aos monges e reitero a prece do rito bizantino: Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison – “Senhor, tende piedade de nós; Cristo, tende piedade de nós; Senhor, tende piedade de nós”.
 
Soli Deo Gloria
 
 
- Ricardo Gondim

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