Quando o inferno nos rodeia

Acostumar-se à guerra é monstruoso. Toda aventura militar é sórdida. O arrazoamento bélico, que desconsidera pessoas em nome de projeto político, nasce no inferno. Paz forjada sobre retaliação e vingança não é paz. Intolerância fermenta ódio

Fonte: guiame.com.brAtualizado: sexta-feira, 18 de julho de 2014 às 11:58
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guerraEm Metamorfose, obra prima de Franz Kafka, o caixeiro viajante Gregor Samsa acorda transformado em inseto. Kafka se vale dessa terrível sina para denunciar o descaso. No sofrimento crônico, enquanto a agonia de Samsa se prolonga, familiares, inclusive os inicialmente chocados e prontos para ajudar, o abandonam.

Kafka fez Gregor Samsa incorporar a insignificância do ser humano nos longos processos de dor para denunciar: o tempo conspira contra a solidariedade. Se, para sobreviver ele continua necessitando dos outros, morrerá à mingua. A família acaba por esquecer o homem metamorfoseado em inseto (alguns acham que era uma barata). Quem se vê preso ao sofrimento abjeto, acorrentado à miséria, não terá escapatória.

Diversos países da África agonizam há anos. Na Palestina que arde, crianças voltam a morrer, dizimadas por bombas de fósforo – Israel já usou essas bombas banidas na Convenção de Genebra. Mas, com o alongar do horror, os noticiários acabam mudando a ênfase – ninguém suporta ficar diante da barbárie o tempo todo.

O fracasso do capitalismo de evitar que mais de um bilhão de pessoas durmam com fome, o neocolonialismo econômico, que perpetua os bolsões de miséria, e o poder da indústria bélica passam quase despercebidos por serem já antigos.

No começo do ano, o Jornal Nacional da Globo gasta, invariavelmente, vários minutos, com alguma reportagem sobre o preço do material escolar de grife; mães e filhos falam sobre o absurdo de comprar um caderno duas vezes mais caro por estampar o emblema de algum time de futebol na capa. O telejornal de maior audiência no Brasil dá pouca ou nenhuma nota sobre o genocídio do Congo, sobre a violência mexicana ou sobre a vida dos emigrantes africanos. A Palestina não toma mais que dois minutos – e a matéria vem de Nova Iorque, Londres ou Tel Aviv – que, obviamente, é versão oficial de quem detém o poder. A mídia brasileira é medíocre.

Voltemos a Gregor Samsa. A morte cotidiana de crianças e idosos em Gaza, pouco a pouco, perderá espaço. Não é bom ver meninos despedaçados. Quem gosta de jantar com imagens de um campo de refugiados da ONU? Milhares de seres humanos a vagar, transformados em gafanhotos em um deserto sem grama, nunca é agradável.

Precisamos resistir. Nenhum ser humano, diminuído à condição de inseto, merece ser esquecido. Continuar a vida e abandonar ao largo os que jazem na estrada entre Jerusalém e Jericó, só nos desumaniza. Rejeitemos a notícia rala sobre a vida íntima de ricos e famosos. Procuremos análises mais profundas sobre os acontecimentos. Cobremos manchetes imparciais. Não aceitemos melindre piegas quando circulam fotografias pavorosas na internet, elas nos acordam da complacência.

Acostumar-se à guerra é monstruoso. Toda aventura militar é sórdida. O arrazoamento bélico, que desconsidera pessoas em nome de projeto político, nasce no inferno. Paz forjada sobre retaliação e vingança não é paz. Intolerância fermenta ódio.

Diz-se que C.S. Lewis confrontou seus amigos que gostavam de discutir literatura em um pub de Oxford em plena II Guerra: O que fazemos aqui discutindo literatura, enquanto a Europa arde? Nero não foi um monstro por incendiar Roma, mas por tocar violino diante do inferno.

Se crianças morrem estraçalhadas por granadas ou de fome, a vida não pode seguir adiante, como normal. Kafka abandona Gregor Samsa empoeirado e triste para nos avisar: se nos acostumarmos com o inferno, nós nos tornamos menos que gente. Que Deus não nos deixe dormir em paz.

Soli Deo Gloria


- Ricardo Gondim

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