É curioso como, com o passar dos anos e o aproximar da velhice, nossos valores mudam. Posições que ambicionávamos, conquistas que valorizávamos e pessoas que nos impressionavam perdem seus encantos. Atrás de nós, vamos fechando portas para euforias juvenis e idealismos inconsequentes. Já não invejamos o triunfo dos insolentes ou o sucesso dos ufanistas. Hoje, ainda sem ser velho, já consigo sentir indiferença para os sonhos mirabolantes dos messiânicos. Confesso que perdi, inclusive, a vontade de ter a última palavra sobre qualquer assunto e não me empolgo com debates que só dão uma falsa sensação de prestígio.
Esse processo começou quando enfrentei uma crise, lá por volta dos meus 40 anos. A própria consciência de que vivia na meia-idade me fez desistir de querer ser herói, conquistador, eleito especial ou semideus. De lá para cá, caminho cada vez mais consciente de que muito dos meus esforços, lendo, estudando, trabalhando, madrugando e virando noites para não perder tempo eram vaidade e correr atrás do vento. Olho para trás e percebo que não foi de minhas poucas conquistas ou dos reconhecimentos humanos que obtive meus melhores contentamentos. Estes vieram do amor de minha família e de amigos verdadeiros — gente que não temia partilhar o mesmo jugo que eu.Assim, fiz alguns ajustes. Redirecionei minha leitura bíblica. Mais do que saber os detalhes exegéticos ou técnicos, ansiei que a Palavra me levasse a uma relação mais íntima com Deus. Reli a Bíblia de capa a capa, procurando o coração paterno de Deus.
Dialoguei com pessoas que tratam da espiritualidade clássica. Recompus minha vida devocional. Aprendi sobre oração contemplativa e redescobri a meditação bíblica. Devorei alguns clássicos, como A Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, A Volta do Filho Pródigo, de Henry Nowen, A Montanha dos Sete Patamares, de Thomas Merton, e o Schabat, de Abraham Joshua Heschel. Eles e outros se tornaram meus mentores nessa nova busca interior.
Talvez, a maior descoberta que faço, nesse tempo que antecede o outono de minha vida, é que minha vocação maior é tornar-me mais humano. Desejo aprender a ser generoso e sereno. Almejo rir, risos contagiantes; quero amar coisas simples e contemplar mais a natureza; saber me deliciar com a arte; brincar com crianças, ler poemas e ouvir a melhor música. Preciso ser mais empático com o pobre, acolher o perdido e dar minha mão ao abandonado.
Nessa jornada espiritual, perdi o medo de me desnudar e mostrar vulnerabilidade. Outrora, eu temia a censura daqueles que poderiam se escandalizar com minha fragilidade. Tentei, muitas vezes, impressionar as pessoas com discursos valentes, quando, inseguro, pedia que Deus segurasse minha mão. Receava que algum psicólogo detectasse disfuncionalidades em mim e na minha família. Acreditava que, se alguém diagnosticasse meu envolvimento no evangelho como uma fuga, perderia toda credibilidade. Evitava contatos íntimos para que as pessoas não notassem que eu não era tão resolvido como demonstrava.
Na mitologia grega as sereias eram criaturas de extraordinária beleza e de uma sensualidade irresistível. Quando cantavam, atraíam os navegantes que não conseguiam pelejar contra seu poder de sedução. Obcecados por aquela melodia sobrenatural, os pilotos arremessavam seus navios contra as rochas da ilha, naufragavam, e as sereias devoravam os tripulantes. Os gregos relatam que apenas dois conseguiram vencer o encanto de inimigas tão terríveis. Orfeu, o deus mitológico da música e da poesia, encontrou um recurso. Quando sua embarcação aproximou-se de onde estavam as sereias, ele salvou seus parceiros, tocando uma música ainda mais doce e envolvente do que aquela que vinha da ilha. A outra solução foi encontrada por Ulisses.
O herói de A Odisséia não possuía talentos artísticos. Sem dons, sabia que não venceria as sereias. Reconhecido de sua fraqueza e falibilidade, concebeu outro plano. No momento em que sua embarcação começasse a se aproximar da ilha sinistra, mandaria que todos os homens tapassem os ouvidos com cera e que o amarrassem ao mastro do navio. Depois que encarou sua fraqueza e incapacidade de enfrentar as armadilhas das sereias, rumou para a ilha, conforme o plano. Do mesmo modo, deu ordem aos tripulantes: mesmo que implorasse para que o soltassem, as cordas deveriam ser apertadas ainda mais. Quando chegou a hora, Ulisses foi seduzido pelas sereias como previra, mas seus marinheiros não o libertaram. Quase louco, pedindo para ser solto, passou incólume pelo perigo. O relato mitológico termina afirmando que as sereias, decepcionadas por ter sido derrotadas por um simples mortal, afogaram-se no mar.
O que salvou Ulisses não foi a percepção de sua superioridade, mas a consciência de sua fragilidade. Ele não tentou enganar a si mesmo. Eu também não quero me iludir com os meus dotes órficos. Dependerei de que meus amigos me amarrem aos mastros para não ceder aos cantos sirênicos.
Assim, descanso. Sinto-me livre para afirmar que ainda estou em construção. Sou um projeto inacabado e não escamotearei minhas ambigüidades. Agora, quando me sentir cansado, terei liberdade de desabafar como Jesus: Ó geração incrédula e perversa, até quando estarei com vocês? Até quando terei que suportá-los? (Mt 17.17). Quando precisar lamentar, lamentarei como Ele quando, triste e angustiado, disse: A minha alma está profundamente triste até à morte. (Mt 26.38). Quando tiver vontade de rir, rirei e dançarei de alegria.
Hoje já não me importo de parecer incoerente ou politicamente incorreto. Dizem que os pensamentos dos anciãos tendem ao enrijecimento e que os velhos resistem mudar de opinião. Busco não me engessar, apegado às minhas velhas idéias e indiferente às novas. Quero seguir o exemplo de Jesus que, em nome da vida, não temeu contradizer as rígidas normas religiosas (Mt 12.2-7); quando conversou com prostitutas e acolheu gentios, não respeitou os preconceitos sociais (Mc 7.24-30); para atender uma mulher siro-fenícia, não teve receios de voltar atrás em sua palavra (Mc 7.24-30). Permanecerei alerta para não me tornar um dogmático e faccioso, cego por minha obstinação.
Recuso encarnar o personagem de Álvaro Campos (heterônimo de Fernando Pessoa) no poema A Tabacaria. A experiência do poeta foi acordar do próprio passado, como um pesadelo, e perceber que perdera contato com a sua própria alma. Vivera uma mentira da qual não pôde escapar. Perdido de si mesmo, não se encontrou mais.
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu…
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era
E não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido.
Anseio por uma humanidade não fingida, que não tenta transformar a mensagem do evangelho em um espelho mágico, que fala o que desejo ouvir. Lerei a Bíblia também contra mim. Permitirei que, como espada, ela penetre no mais profundo do meu ser, discernindo, inclusive, as intenções nebulosas de meu coração.
Atenderei a admoestação do profeta Miquéias: Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus (6.8).
Acredito que vem dele minha teimosia em acreditar que não precisamos esperar morrer para começar a viver. E, como passamos rapidamente, sugiro que comecemos já.
Soli Deo Gloria
- Ricardo Gondim
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