Resgatando a brasilidade da nossa fé

Resgatando a brasilidade da nossa fé

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 9:07

 

féSempre achei curioso o fato de o código de acesso telefônico para os Estados Unidos ser 01 e o do Brasil, um longínquo 55. É que, na nova ordem globalizada, eles são a matriz. Merecem o primeiro lugar até na discagem direta internacional. Já o nosso número pode significar simbolicamente a distância com que o império nos enxerga.
 
Os americanos são verdadeiramente a nova matriz do mundo. Possuem um poder militar amedrontador, que policia mares, montanhas e florestas do planeta. Sua moeda é o referencial financeiro dos mercados. Investem mais dinheiro na ONU que qualquer outro país e assim podem vetar ou aprovar moções da comunidade internacional. Publicam mais livros, lideram em investimentos em pesquisa tecnológica e assim possuem o maior número de cientistas detentores do Prêmio Nobel. Quando queremos nos divertir, assistimos aos filmes que eles produzem. Quando os países pobres enfrentam apuros financeiros correm para Nova York pedindo um novo empréstimo. Os americanos são tão poderosos que conhecem pouco o que acontece em outros países. Eles se bastam – muitos continuam achando que Buenos Aires é a capital do Brasil e que cobras ainda passeiam por nossas cidades.
 
Os brasileiros idolatram a América. Avaliamo-nos, cabisbaixos, como um povinho medíocre destinado a ser vassalo de uma grande potência. Preferimos suas músicas, embora não entendamos a letra. Não valorizamos devidamente nossa arte, cultura e história. Milhares já emigraram para lá. Aceitam lavar pratos e chão de cozinha pelos dólares escassos por aqui. Achamos que os parques de diversão americanos são mais interessantes que nossas praias de areia branca com sol quente e água morna.
 
Recentemente visitei uma famosa faculdade bíblica nos Estados Unidos. Gastei algumas horas na livraria. Maravilhei-me com a quantidade de títulos publicados, encantei-me com a profundidade teológica e a seriedade com que abordam diversos temas. Porém, entristeci-me ao constatar que não havia nada, em nenhuma prateleira, de autores latino-americanos. Brasileiros então, nem se fala! Lá na sede do império não se sabe quase nada sobre os evangélicos latino-americanos, a não ser rumores de que um grande avivamento ocorre por aqui. Os evangélicos se distanciam da cultura americana como o Conde Zinzendorf e sua misteriosa Morávia da realidade atual. Indignei-me quando li o famoso Este Mundo Tenebroso, de Frank Perreti. A trama do livro é a batalha espiritual que acontece em uma cidadezinha americana do interior que seria dominada por uma seita da Nova Era. No último capítulo, os demônios que animavam a religiosidade da Nova Era são finalmente vencidos e expulsos. Mas para onde eles vão? Para o Rio de Janeiro!
 
Nessa última visita aos Estados Unidos, preocupei-me em assistir aos programas dos televangelistas, conversar com os evangélicos sobre política e ouvir o conteúdo das pregações. Espantei-me ao perceber como os programas (principalmente os carismáticos) procuram imitar as grandes produções hollywoodianas. Os pastores se produzem com gel no cabelo e vestem ternos caríssimos. Suas esposas, carregadas de maquiagem, parecem personagens de outro planeta. Algo destoa quando falam do Jesus de Nazaré, que foi simples e viveu uma vida singela. O conteúdo dos sermões tem duas polegadas de espessura. As megaigrejas são construções suntuosíssimas, com luminárias de cristal, tapetes maravilhosos e assentos confortabilíssimos. Financiadas com empréstimos a juros baixos, erguem-se à beira das auto-estradas como símbolos da parceria de Mamom e Jeová, que a cultura americana promove tão bem.
 
Os evangélicos americanos gostam muito do Partido Republicano. Veneravam o Bush filho e odeiam o presidente Obama. Acreditam que a sorte do país está ligada à obrigatoriedade da prece nas escolas, à proibição do aborto e à denúncia da homossexualidade como perversão. Não lhes interessa muito a emissão de gás carbônico na atmosfera (a maior do mundo), o descaso com a epidemia de Aids na África e a desigualdade nas relações comerciais com os países miseráveis do planeta. Nenhuma denúncia é ouvida dos púlpitos americanos quando sobretaxam as importações e subsidiam a agricultura, falindo a economia primária das nações pobres. O american way of life (estilo de vida americano) e o evangelho são irmãos siameses. Quase impossível de se separarem!
 
O movimento evangélico brasileiro repete o mesmo comportamento nacional. Também se vê com autodesprezo. A grande maioria dos livros teológicos ou de espiritualidade é tradução dos best-sellers americanos (alguns rasos e descontextualizados). Traduz  músicas e se maravilha com o poder espiritual de evangelistas pop starr. Convida pastores americanos para ministrar em congressos sobre espiritualidade porque os consideram mais íntimos de Deus. Eles ensinam métodos de crescimento da igreja e alguns chegam por aqui com pretensa autoridade apostólica, soprando sobre os auditórios para que pessoas caiam. Balançam o paletó, acreditando que uma onda espiritual despertará o povo. A ironia disso tudo é que aqueles que ensinam sobre espiritualidade vêm de subúrbios limpos, moram em casas calafetadas no inverno e refrigeradas no verão. Nunca presenciaram uma cena de violência urbana, jamais foram assaltados. Não gastam mais que 15 minutos no trânsito e convivem com uma congregação com renda per capita de mais de 50 mil dó
lares por ano. Só porque conseguiram aumentar a congregação para mais de 2 mil membros, vêem-se habilitados a ensinar como fazer uma “evangelização explosiva” (sic). Habilidosos em manipular um auditório entorpecido pela euforia religiosa, acham que podem exportar uma “nova unção” que derruba gente no chão.
 
Eu gostaria de ser mentoreado sobre espiritualidade por um pastor que ora, lê as Escrituras e medita nelas a partir da periferia das grandes cidades do Brasil, verdadeiras zonas de guerra. Porque sou brasileiro, prefiro ouvir de pastor-teólogo que cuida de congregações lotadas de gente desempregada e aflita com a instabilidade da economia. Porque também convivo com a dura realidade da violência, quero aprender a aconselhar com pessoas que sabem o que é cuidar de homens e mulheres que já testemunharam chacina ou já foram assaltados à mão armada.
 
Prefiro conversar com um desses plantadores de igrejas anônimos que construíram várias pequenas igrejas sem recursos a ouvir de teóricos sobre o método gerencial mais eficaz que faz uma igreja crescer numericamente;  mas nunca plantaram, eles mesmos, uma comunidade sequer.
 
Apesar de imaturo e vulnerável a modismos, o jeito brasileiro de viver a fé pode ser muito bom. O fervor com que se louva a Deus por aqui tem força de contagiar de alegria. As diversas expressões missionárias, mesmo ainda meio indisciplinadas e anárquicas, podem se mostrar frutíferas. O pipocar contínuo de igrejas que se estabelecem nas redondezas pobres das grandes cidades não é capaz de contribuir para reduzir violência, aumentar alfabetização e desenvolver maior cidadania? Sobejam exemplos de missões que alcançam prostitutas e travestis. As igrejas não têm como auxiliar no reconhecimento da dignidade de gente esquecida?  Os galpões velhos, os cinemas abandonados, lugares outrora esquecidos que viraram templos, são espaços simbólicos da capacidade de incursão do Evangelho em setores esquecidos da sociedade.
 
O Brasil evangélico poderia ser um contraponto à complacência cristã do Primeiro Mundo. Afinal de contas os cristãos do sul continuam com taxas de crescimento entre as maiores do mundo. Com um zelo missionário invejável por que não mobilizar mais ações de cidadania?  Se a capacidade de mobilização impressiona os que se interessam em estudá-la, por que não torná-la mais engajada em direitos humanos? A instabilidade econômica forçou muitos pastores a sobreviverem dos dízimos e ofertas semanais. E esse idealismo de não ser uma igreja endividada poderia mostrar-se como alternativa ao neoliberalismo consumista que impera no Ocidente?
 
O problema é que o movimento evangélico brasileiro reproduz o fundamentalismo acrítico, a intolerância dogmática e o espírito belicoso dos “evangelicals” do norte. E com essa postura, não se articulam muitos teólogos com intrepidez de publicar reflexões e idéias transgressivas, pastores que repartam experiências alternativas em comunidades e sequer poetas e escritores que surpreendam com meditações poeticas ou com literatura de primeira linha.
 
Com tanta riqueza possível, sugiro que os cristãos não se deslumbrem com a “matriz”, desejando ser iguais a ela. Restam poucas alternativas para o Brasil evangélico não afundar no desgaste que a falta de credibilidade tem gerado. Entre as opções: resgatar a identidade cristã nacional; e celebrar a brasilidade, desvencilhando-se da dependência de modelos importados, que podem ter relevância lá, mas que dizem pouco para o que se vive por aqui. Gana de sucesso pode valer numa espiritualidade anglosaxônica, aqui contam os ambientes amigos, inclusívos e, por que não, lúdicos. O Deus que dança é bem vindo no Brasil.
 
Para ser evangélico não é preciso fazer parte do Movimento Evangélico e muito menos do “Evangelical Movement”. Mãos à obra, pastores, seminaristas, cantores, missionários, evangelistas, escritores, poetas e professores brasileiros. Há muito que fazer!
 
Soli Deo Gloria
 
 
- Ricardo Gondim

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