Como a guerra Rússia-Ucrânia está ligada à religião? Entenda o cenário da Igreja Ortodoxa

Como a complicada relação entre as Igrejas Ortodoxas russa e ucraniana refletem nos conflitos políticos.

Fonte: Guiame, com informações da AP NewsAtualizado: terça-feira, 1 de março de 2022 às 15:29
Visita do presidente russo Vladimir Putin à Catedral da Dormição. (Foto: Serviço de Imprensa do Presidente da Rússia)
Visita do presidente russo Vladimir Putin à Catedral da Dormição. (Foto: Serviço de Imprensa do Presidente da Rússia)

Os conflitos entre Ucrânia e Rússia não se limitam apenas ao cenário político, mas também à religião. De um lado, estão os cristãos ortodoxos ucranianos que apoiam uma igreja independente em Kiev. De outro, estão os ucranianos ainda leais à Igreja Ortodoxa Russa.

Embora cada divisão da Igreja Ortodoxa defenda sua própria nacionalidade, a questão não se aplica diante dos recentes ataques da Rússia à Ucrânia. De ambos os lados, os líderes ortodoxos têm apelado pelo fim da guerra, bem como católicos e protestantes.

“Esqueça as brigas e os mal-entendidos mútuos e se unam com amor a Deus e à nossa pátria”, disse o metropolita Onúfrio, primaz da divisão da Igreja Ortodoxa Ucraniana que está sob o Patriarcado de Moscou.

Apesar do apelo à unidade, as ramificações da Igreja Ortodoxa russa e ucraniana continuam tendo uma relação complicada. Depois do pedido de Onúfrio na quinta-feira passada (24), o site da Igreja Ortodoxa Ucraniana começou a publicar comunicados culpando os representantes da igreja rival pelos ataques.

Desde o fim da União Soviética até 2018, houve três igrejas ortodoxas ativas na Ucrânia: a Igreja Ortodoxa Ucraniana sob o Patriarcado de Kiev, a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana e a Igreja Ortodoxa Ucraniana sob o Patriarcado de Moscou. 

Em 15 de dezembro de 2018, houve a unificação das três vertentes, contando com apenas uma parte da Igreja Ortodoxa Ucraniana (sob o Patriarca de Moscou), que faz parte da Igreja Ortodoxa Russa.

A maioria da população na Ucrânia é cristã (71,7%), mas se divide dentro destas vertentes.  Cerca de 67,3% dos ucranianos são cristãos ortodoxos (sendo 28,7% do Patriarcado de Kiev, 12,8% do Patriarcado de Moscou e 0,3% da Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana). Outros 23,4% se reconhecem simplesmente como 'ortodoxos' e 1,9% praticam tipos de ortodoxia.


Patriarca Kirill de Moscou na celebração de Natal da Igreja Ortodoxa russa. (Foto: Sergey Vlasov/Serviço de Imprensa do Patriarca de Moscou e toda a Rússia)

Além disso, 7,7% dos ucranianos são cristãos sem filiação denominacional, 9,4% são católicos de rito bizantino, 2,2% são protestantes, 0,8% são católicos de rito latino, 2,5% são muçulmanos e 0,4% são judeus. Os dados são de uma pesquisa de 2018 realizada pelo Centro Razumkov.

Qual é a origem religiosa dos ucranianos e russos?

A Ucrânia e a Rússia estão divididas por uma história comum, tanto religiosa quanto politicamente.

Ambos os países traçam sua ascendência ao reino medieval de Rus' de Kiev, cujo príncipe Vladimir (Volodymyr em ucraniano) rejeitou o paganismo no século 10, foi batizado na Crimeia e adotou o cristianismo ortodoxo como religião oficial. Na época, o príncipe Vladimir chamou o povo de Kiev para um batismo em massa no rio Dniepre.


Ilustração do Batismo da Rus'. (Foto: Klavdiy Lebedev/OrthodoxWiki)

Em 2014, Putin citou essa história ao justificar a anexação da Crimeia, uma terra que ele chamou de “sagrada” para a Rússia.

Enquanto Putin diz que a Rússia é a verdadeira herdeira de Rus, os ucranianos dizem que seu Estado moderno tem um pedigree distinto e que Moscou teria emergido como uma potência apenas séculos depois.

Essa tensão persiste nas relações ortodoxas.

Quem governa as igrejas ucranianas hoje?

A resposta está em acontecimentos de mais de 300 anos atrás.

A Igreja Ortodoxa surgiu a partir do Cisma de 1054, quando o cristianismo passou a se constituir em dois grandes grupos: a Igreja Católica Apostólica Romana, com sede em Roma e a Igreja Ortodoxa, com sede em Constantinopla (atual Istambul).

Anos mais tarde, a Rússia foi crescendo em força, enquanto a Igreja de Constantinopla foi sendo enfraquecida sob o domínio otomano. Com isso, em 1686, Constantinopla delegou ao Patriarca de Moscou a autoridade para ordenar o metropolita (principal bispo) de Kiev.

A Igreja Ortodoxa Russa acredita que esta foi uma transferência permanente. O Patriarca Ecumênico de Constantinopla diz que foi temporário.

Depois de 2019, quando o atual Patriarca Ecumênico Bartolomeu I reconheceu a Igreja Ortodoxa da Ucrânia como independente do patriarca de Moscou, a situação se tornou ainda mais delicada.

A divisão religiosa reflete na política dos dois países?

O ex-presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, fez uma conexão direta entre a independência religiosa e política: “A independência da nossa igreja faz parte das nossas políticas pró-europeias e pró-ucranianas”, disse ele em 2018.

Mas o atual presidente, Vladimir Zelinskyy, que é judeu, não colocou a mesma ênfase no nacionalismo religioso. 

No sábado (26), ele disse que conversou com líderes ortodoxos, católicos, muçulmanos e judeus. “Todos os líderes rezam pelas almas dos defensores que deram suas vidas pela Ucrânia e por nossa unidade e vitória. E isso é muito importante”, disse ele.

Já o presidente Vladimir Putin, em seu discurso de 21 de fevereiro, buscou justificar a invasão da Ucrânia com uma narrativa histórica. Ele alegou que Kiev estava se preparando para a “destruição” da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou.

Mas a reação do metropolita Onúfrio, que comparou a guerra ao “pecado de Caim”, o personagem bíblico que assassinou seu irmão, indica que até mesmo a igreja sob Moscou carrega uma forte identidade nacional ucraniana.


Epifânio I, primaz da Igreja Ortodoxa da Ucrânia. (Foto: Facebook/Epifânio Metropolitano)

Enquanto isso, o Patriarca Kirill de Moscou pediu paz, mas não culpou a Rússia pela invasão.

“Independentemente da afiliação da igreja, há muitos novos clérigos que cresceram na Ucrânia independente”, disse Alexei Krindatch, coordenador nacional do Censo das Igrejas Cristãs Ortodoxas dos EUA, à AP News. “Suas preferências políticas não estão necessariamente correlacionadas com as jurisdições formais de suas paróquias”.

Onde estão os católicos?

Os católicos ucranianos estão baseados principalmente no oeste da Ucrânia, com um histórico de resistência à perseguição sob czares e comunistas.

“Toda vez que a Rússia assume o controle da Ucrânia, a Igreja Católica Ucraniana é destruída”, disse Mariana Karapinka, chefe de comunicações da Arquieparquia Católica Ucraniana da Filadélfia.

Os católicos ucranianos foram severamente reprimidos pelos soviéticos, com vários líderes martirizados. Muitos católicos ucranianos continuaram se reunindo clandestinamente, e a igreja se recuperou fortemente desde o fim do comunismo.

Ao lado dos católicos, outros grupos cristãos têm uma forte razão para resistir ao domínio de Moscou. “Os católicos ucranianos não foram o único grupo perseguido pelos soviéticos”, disse Karapinka. “Muitos grupos têm motivos para resistir.”

E as igrejas ortodoxas fora da Rússia e Ucrânia?

A Igreja Ortodoxa Russa decidiu romper os laços com o Patriarca Ecumênico de Constantinopla em 2018, quando ele reconheceu uma igreja independente na Ucrânia. Desde então, os membros que pertencem a uma não podem comungar na outra.

As igrejas ortodoxas na África também entraram no cisma religioso, depois que o patriarca da África reconheceu a independência da igreja ucraniana.

Mas outras igrejas tentaram evitar a briga. Nos EUA, que tem várias jurisdições ortodoxas, a maioria dos grupos ainda caminha comungam juntos.

A guerra pode fornecer um ponto de unidade entre as igrejas dos EUA, mas pode enfraquecer ainda mais as relações entre russos e ucranianos.

“Esta divisão que ocorreu na ortodoxia mundial foi um evento difícil para a Igreja Ortodoxa processar”, disse o reverendo Alexander Rentel, chanceler da Igreja Ortodoxa na América, que hoje é independente de Moscou. “Agora vai ficar ainda mais difícil por causa desta guerra.”

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Parte das informações foram retiradas de um relatório da Associated Press, produzido pelos repórteres Yuras Karmanau, em Kiev, e Luis Andres Henao, em Princeton, Nova Jersey (EUA).

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