O filme é mudo, mas colorido. A música marca o ritmo da narrativa durante oito minutos e alguns segundos. Em cena, dois vizinhos convivem em invejável harmonia. Suas casas, ao fundo, são idênticas. Ocupam um espaço comum e não têm cerca, apenas um amplo gramado.
Tudo começa com os dois sentados em espreguiçadeiras também idênticas, lendo jornal. Nada parece perturbar a bucólica convivência dos vizinhos, a não ser uma plantinha que resolve brotar em flor bem no meio do gramado.
Surpresos com a novidade e inebriados com a beleza e o perfume da flor, primeiro eles a contemplam, depois brigam pela posse dela. Logo erguem uma cerca, que um puxa daqui e outro dali, um pouco mais para um lado, um pouco menos para o outro, à medida que a discussão aumenta. Cada qual quer a plantinha do seu lado. Do verbo, os vizinhos passam para a agressão física, a qual só faz crescer. Destroem a cerca, destroem a planta e muito mais.
Não conto o final da história, para não estragar a surpresa de quem ainda não a conhece. Ela data de 1952, mas se mantém atualíssima. Na verdade, é obra-prima de um gênio do cinema de animação, chamado Norman McLaren.
Para quem quiser ver ou rever, o filme se chama Neighbours (Vizinhos) e há cópia no YouTube .
Experiência em grupo No linguajar rotineiro, é comum o policial se referir ao cidadão para designar o autor de um delito. As autoridades, políticos em geral, também usam a palavra com frequência. É como se cidadão fosse um termo neutro, impessoal, para se falar de um desconhecido a respeito do qual não se deve, ou não se pode, emitir juízo.
No pleno gozo dos seus direitos, o cidadão tem a contrapartida dos deveres para equilibrar o seu convívio com os outros e esse espectro é vasto. Os outros são a família, a vizinhança, os colegas do trabalho e da escola, a turma de amigos, os integrantes da religião e da comunidade, os frequentadores do clube, os moradores do bairro, os habitantes da cidade e do país. Os outros são todo o mundo.
É na escola, principalmente, que desde cedo aprendemos a conviver com os outros e tomamos contato com princípios básicos da cidadania: respeito, tolerância, solidariedade. Por isso, a escola é tão importante para a formação do indivíduo: é a sua primeira experiência em grupo; é a relação com outro gênero (já vai longe o tempo em que as escolas separavam meninos e meninas); é o convívio com a camaradagem, o companheirismo, mas também com as normas, a disciplina, a autoridade. Sem que a gente se dê conta, o exercício da cidadania começa na escola e faz sentido. As diferenças estarão presentes de maneiras mais complexas na vida adulta.
Uma revolução interior O compromisso com a sustentabilidade depende do exercício da cidadania e isso equivale a uma revolução pessoal, particular e intransferível.
Por mais estranho que pareça, para que a cidadania se faça valer no plural dos relacionamentos, consolidando as práticas de sustentabilidade tantas vezes festejadas, é preciso que o cidadão tome consciência do seu papel social individualmente. E o que significa isso? Pagar impostos? Não invadir a faixa de pedestres? Professar uma crença? Falar somente a verdade? Acabar com a miséria?
Ser cidadão não é fácil, porque antes de entender e aceitar o outro, a gente precisa se entender e se aceitar. Tarefa das mais difíceis em um mundo que nos vende modelos prontos, acabados, do que deveríamos ser.
Norman McLaren termina o seu filme com apenas um letreiro em vários idiomas: Ame o seu vizinho. Talvez esse seja um bom caminho para exercitarmos a cidadania, fazendo o possível para colocar em prática todos os nobres sentimentos que deveriam nos mover: ouvir o próximo, ser paciente, prestar solidariedade, respeitar o contrário, lutar pela liberdade, partilhar conhecimento, exercer caridade, manter a paz. O leitor deve ter tantos outros com os quais completar esta lista.
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