"Amo Bach e Mozart. Junto com os livros, eles me salvaram. Eles falavam mais alto que a fome e me transportavam para outros mundos", conta o médico. "Depois descobri Vivaldi e Strauss e comecei a amar música clássica. Às vezes eu pensava, vendo a vida dos compositores, que se Bethoven era surdo e fez o que fez, eu não poderia tentar? Eu, mesmo com fome, mesmo com adversidades, pobre, negro, não sendo homem bonito, conseguiria chegar lá. E é isso que a gente tem que pensar, que todo esforço é poder."
A inspiração o levou a fazer um teste para o curso profissionalizante de técnico de enfermagem, que valia como ensino médio. A ideia veio dos cuidados que ele tinha com a saúde da família e do gosto por dissecar cachorros mortos ou observá-los ampliados com a ajuda de uma lente achada em máquina de fotografia Polaroid, também tirada do lixo. O jovem foi aprovado em segundo lugar na seleção.
Após concluir os estudos, Cícero decidiu então prestar concurso e passou a trabalhar na Secretaria de Saúde. O pouco dinheiro já era um alívio diante das dificuldades vividas pela família, mas o rapaz queria mais. Três anos depois, fez vestibular para medicina em uma faculdade particular no interior de Minas Gerais, passou e, sem pensar duas vezes, decidiu enfrentar o novo desafio.
Como não podia abrir mão do emprego, o jovem se dividia entre os plantões aos fins de semana no Distrito Federal e as aulas na outra cidade. O salário seguia contado. "Acabei passando fome, cheguei a desmaiar em sala. Por vezes, precisei dormir na rodoviária para economizar", lembra.
Um ano e meio depois, o rapaz conseguiu 100% de desconto em uma instituição de Paracatu (MG) por causa do bom desempenho no Enem. A faculdade se recusou a aproveitar os três semestres feitos em Araguari, e Cícero precisou recomeçar os estudos. Seis meses depois, já em 2008, ele repetiu o resultado e conquistou uma bolsa integral em Brasília.
"Quando vim, eles aproveitaram algumas matérias, mas também não quiseram me progredir de período, portanto eu voltei à estaca zero de novo. Mas eu nunca desisti, continuei trabalhando e fazendo o meu curso. Eu saía do plantão noturno para a faculdade. Era muita dificuldade, tinha dias que eu chegava molhado e sujo porque tinha chovido, eu pegava dois ônibus, e no trabalho eu era obrigado a usar roupa branca", conta.
Sem os custos com passagens de viagens interestaduais e a mensalidade, Cícero pôde se dedicar melhor às paixões. Ele virou frequentador assíduo de sebos e passou a comprar mais livros e vinis. Assim, reforçou a paixão pelos autores e músicos que conheceu por meio do lixo e pôde estender as noções que já tinha na área. As primeiras compras para si foram livros da faculdade de medicina e CDs de música clássica.
"Nunca foi fácil, meu dinheiro nunca foi suficiente, mas eu não cedi. Eu me esforcei, eu não me rendi às adversidades financeiras, às adversidades das drogas. Eu dormi no meio da rua fugindo das drogas que tinha dentro de casa muitas vezes. Eu não era morador de rua, eu tinha onde ficar, mas eu dormia fora para evitar a situação. Nunca usei droga, nunca botei um cigarro de maconha ou qualquer cigarro na boca, nunca bebi", explica.
Formado em junho deste ano, Cícero atualmente trabalha como médico clínico e generalista em dois hospitais de Águas Lindas e Valparaíso, municípios no Entorno do DF. Ele afirma reconhecer em muitos pacientes um quadro semelhante ao que viveu. "São iguais a mim. São pessoas que muitas vezes chegam com fome, chegam doentes porque não tiveram o que comer"
Para ele, a experiência na infância acaba o ajudando a cumprir o que considera uma missão. "O médico muitas vezes tem essa autonomia de aliviar o sofrimento. Eu me formei em medicina para aliviar o sofrimento de pessoas que estavam como eu."
Futuro
Além de continuar prestando atendimento a quem vive em situação de vulnerabilidade social, o médico planeja a abertura de um consultório particular na capital do país e acumula os sonhos de fazer residência em psiquiatria e especialização em medicina aeroespacial fora do Brasil.
"Gosto de entender os conflitos humanos, as fugas, os processos que levam a pessoa à dependência química, à realidade de alguns familiares meus, como o alcoolismo da minha mãe e o uso de drogas do meu irmão. Como estas pessoas se entregaram ao vício? Como tratá-las? Como curá-las? Eu também sempre gostei das coisas do espaço, das estrelas, pois de certa forma olhar e compreender o céu me aliviavam o sofrimento e a fome e me davam força para seguir em frente", declarou.
O profissional, que voltou a morar com a mãe no Chaparral, afirma ainda querer comprar um apartamento para poder morar sozinho, além de promover melhorias na casa da família. "Está em pedaços e mofada, e minha mãe por isso tem pneumonias de repetição. Se eu não conseguir reformar a casa da minha mãe, [quero] tentar comprar uma para ela."
"Minha mãe está velhinha e precisa de um mínimo de conforto e paz. Ela cuidou de muitos filhos, já está na hora de eu cuidar dela agora que eu me formei médico. Não quero que ela passe fome de novo, não quero que ela viva em uma casa com goteiras e mofo. Esses últimos ideais são meus sonhos de realização imediata e necessária", afirmou.