"A Mostra de SP é um pensamento. Se no ano que vem não tiver patrocínio, acabou"

"A Mostra de SP é um pensamento. Se no ano que vem não tiver patrocínio, acabou"

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:10

Marco Tomazzoni

Organizadora do festival de cinema paulistano, Renata de Almeida conta como foi montar o primeiro evento sem Leon Cakoff, morto em 2011

Às vésperas do início da 36ª edição da Mostra de Cinema de São Paulo, a sede do festival, nos arredores da avenida Paulista, está a todo vapor. Em mesas muito próximas, funcionários e monitores se debruçam frenéticos sobre os computadores, telefones tocam sem parar, as conversas e problemas se misturam.

De cabelo preso e blazer um pouco maior do que o corpo, Renata de Almeida dispara orientações com voz forte e decidida. A diretora do evento está na reta final de sua primeira Mostra sozinha, que abre ao público neste sexta-feira e se estende até 1º de novembro, com mais de 350 filmes na programação.

Em 14 de outubro, dia anterior à entrevista com o iG, fazia um ano da morte de Leon Cakoff, marido, fundador e comandante do festival por mais de três décadas. Em 2011, mesmo doente, ele havia se envolvido nos rumos da Mostra, mas a menos de uma semana da abertura, perdeu uma longa batalha contra o câncer. Renata levou o evento até o fim e partiu para o próximo ano com a certeza de que precisava fazer uma Mostra \"muito impactante\".

"Eu tinha que mostrar força\", diz Renata. \"Não foi fácil passar esse ano. Várias vezes pensei que não ia aguentar continuar trabalhando com isso, precisava achar outra coisa, porque é muito dolorido. Mas o mundo não funciona com dó. Não existe profissão viúva. Você tem a confiança dos amigos, dos patrocinadores, e as pessoas cansam – não adianta ajudar uma pessoa se ela não quer se ajudar. Então tive esse ano de confiança.\"

Para continuar à frente da Mostra, depois de tanto tempo de cumplicidade com Cakoff, conta que teve de inventar um novo jeito de trabalhar, ao lado de uma equipe que chama de \"maravilhosa\", e, salienta, de \"amigos\". Ao mesmo tempo, esclarece que nada era, exatamente, novidade.

"Falam que estou continuando o trabalho do Leon, mas não, estou continuando o meu trabalho. Trabalho nisso há 22 anos! Quantas pessoas podem falar isso? É muita experiência, do contrário não conseguiria ter feito neste ano. E não é que o lugar do Leon esteja vago, ou que eu tomei o lugar dele e alguém vai vir para o meu. Isso não existe. Tanto é que eu continuo na minha mesa, no mesmo lugar, e na sala do Leon tem cinco pessoas trabalhando.\"

Era o momento de reafirmar uma outra etapa da Mostra, e nisso Renata garante que o ineditismo era essencial. Criada no ano passado e mantida nesta edição, a regra estabelece que só são selecionados filmes estrangeiros inéditos no país. Produções prestigiadas exibidas no Festival do Rio, por exemplo, ficam de fora.

"Numa era em que a informação circula muito, regida pela duplicação e transitoriedade, como manter a força do evento? Sendo único, autêntico\", esclarece a diretora. \"E não é por causa do Festival do Rio, não, existem milhões de festivais. O que é melhor para a Mostra hoje é isso, não tenho dúvida. Tive medo, medo mesmo. Precisei aguentar pressões de todos os lados, inclusive de dentro do escritório. A gente fez a opção mais difícil, porque isso dá força internacional para festival. Enquanto eu trabalhar na Mostra, vou pensar no bem da Mostra.\"

Renata rejeita a ideia de que quem sai perdendo é o cinéfilo, que deixa de ter acesso a filmes importantes. \"O cinéfilo só perde os filmes que já têm distribuição, nunca vi ninguém reclamar de um filme que não tivesse\", explica. \"A gente faz o convite e a decisão é do distribuidor, se o filme tiver um. A opção é dele e não vou ficar brigando com ninguém. Perco um, ganho outro, e assim vai. Se você faz um trabalho consistente, um filme ou outro não faz tanta diferença no peso do evento. Óbvio que a gente sente, mas paciência. Vamos oferecer o espaço da Mostra para filmes que ainda não tiveram essa chance. Se o filme tem distribuição, ótimo, já é meio caminho andado. É para isso que servem os festivais.\"

Exposição e exibição ao ar livre

A Mostra de São Paulo 2012 será marcada por uma ampla homenagem a Andrei Tarkóvski, cineasta russo que teria completado 80 anos em abril. Além de uma retrospectiva completa, a programação inclui ainda debates, lançamento de um livro e uma exposição de polaroides feitas pelo diretor em seus últimos anos de vida, em cartaz no Masp. Quando acertou os detalhes com os herdeiros de Tarkóvski, Renata de Almeida diz ter respirado aliviada.

"É uma situação muito angustiante e não tinha dúvida de que seria algo muito forte. Não era algo muito pop, trazer o filho do Tarkóvski não ia garantir um monte de capas de revista, mas senti que ia ser bacana. Depois, vendo a vinheta, camisetas e a Central no Conjunto Nacional (todos estampados com as fotos do cineasta), pensei, \'nossa, fizemos o Tarkóvski virar o Andy Warhol\'\", comenta, rindo.

Outra grande atração é a projeção ao ar livre, em 2 de novembro, de uma cópia restaurada do clássico mudo \"Nosferatu\", no parque Ibirapuera, com trilha sonora executada ao vivo. Renata conta que quase desistiu da ideia, já que a orquestra Jazz Sinfônica, convidada habitual para eventos do gênero, não estava disponível. Movida por um sentimento que descreve como \"insegurança\", reverteu a situação.

"Uma mostra de cinema é de cinema. Não precisava ter exposição e uma orquestra no parque, com 80 músicos, coro, regência de maestro alemão. Me falaram, \'por que tem que fazer tudo junto?\'. Mas como era um ano em que eu tinha a certeza de que precisava fazer uma Mostra muito impactante, movida pela paixão, achei importante fazer isso. Fazer bem feito, como se fosse a última Mostra.\"

Última Mostra? É uma forma de expressão, mas não deixa de refletir a realidade. Escaldada por conta da desistência de um patrocinador, que a semanas do início do evento desistiu do aporte e abriu um buraco de mais de R$ 600 mil no orçamento, Renata condiciona o futuro à existência de apoios.

"Se no ano que vem não tiver patrocínio, acabou. É muito frágil. Não temos uma sede própria, aqui é alugado, não temos bens físicos. A Mostra é uma ideia, um pensamento, que se constroi todos os anos. Não sou eu que faço a Mostra, ela precisa ter condições de existir: equipe, patrocinador, público.\"

Ela tanto diz que não faz a Mostra sozinha que declara não se sentir responsável por ela. \"Não me comprometi a continuar com a Mostra. No ano passado ficou muito essa imagem, mas falei que minha homenagem ao Leon era fazer neste ano. Já não me sinto na obrigação de fazer nada. Não tenho dívida nem culpa, nem mesmo com o Leon. Acho que esses sentimentos não cabem, principalmente em relações amorosas. Responsabilidade e comprometimento, sim: se me propus a fazer neste ano, vou fazer de tudo para fazer bem feito. Se tiver condições, faço no ano que vem. Mas não sou eu, sozinha, quem dou essas condições. Não sou a Mulher Maravilha.\"


 

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